O Ministério Público Federal (MPF) ajuizou ação civil pública contra o estado de Roraima (RR) em razão de declarações discriminatórias do governador Antônio Denarium (PP) sobre o povo indígena Yanomami.
Os comentários ocorreram em entrevista ao jornal Folha de São Paulo no dia 29 de janeiro deste ano. O MPF pede a retratação do Governo, por intermédio do chefe do executivo, bem como danos morais coletivos no valor de R$ 1 milhão.
A ação aponta que Denarium utulizou expressões que desumanizaram e menosprezaram a cultura dos Yanomami, incentivando assim o abandono do seu modo de vida tradicional. Além disso, as falas minimizaram a crise humanitária vivida pelos Yanomami. E do mesmo modo, minimizaram ainda o impacto da ação do garimpo na saúde, no modo de vida e no território desse povo.
‘… parecendo bichos’
A íntegra da entrevista é transcrita na peça, que destaca trechos da fala do governador caracterizadas como ódio étnico: “Eles [indígenas] têm que se aculturar, não podem mais ficar no meio da mata, parecendo bicho”.
Segundo o MPF, a declaração despreza e subjuga a autonomia, a organização social e os seus modos de criar, fazer e viver. “Ao compará-los a ‘bichos’, coisifica o grupo étnico, relegando-o à condição subumana”.
O governador ainda afirmou que a desnutrição não existiria somente no estado, não sendo possível vincular o garimpo à situação dos Yanomami. Ele teria defendido também a aculturação do povo indígena e a exploração econômica de suas terras.
A fala teve grande repercussão local e nacional, despertando a indignação dos povos indígenas. Como resultado foi formalizada representação pela comunidade yanomami, pelo Conselho Indígena de Roraima (CIR) e por cidadãos não indígenas.
Dessa forma, o MPF ainda abriu inquérito para apurar as declarações, que foram confirmadas em nova entrevista à Veja. Nesse sentido, a ação também relata que o escritório jurídico da empresa Folha da Manhã S.A., responsável pela edição do jornal Folha de São Paulo, declarou possuir “todos os registros pertinentes à comprovação do quanto descrito na matéria”.
Panorama e histórico
A ação civil pública detalha a atual situação da mineração ilegal no estado e seus impactos na Terra Indígena Yanomami, com a crescente sobreposição dos garimpos ilegais nos espaços de uso tradicional das comunidades, tanto no entorno das aldeias quanto nos cursos de rios, com consequências para as populações e para o meio ambiente. A peça também apresenta a contextualização histórica que levou ao quadro de racismo institucional contra os povos indígenas.
A fim de demonstrar “a conhecida a tensão étnica existente nesta parte do Brasil entre indígenas e não índios”, a ação do MPF traz episódios violentos contra os povos da localidade, desde o passado colonial até o Massacre de Haximu, ocorrido há 30 anos.
O órgão cita também eventos recentes que teriam contribuído ainda mais para o agravamento da situação. Como a extrusão de milhares de garimpeiros invasores quando da homologação da Terra Indígena Yanomami no governo Collor; a desintrusão de rizicultores da Terra Indígena Raposa Serra do Sol, a controvérsia atinente à constitucionalidade da criação do município de Pacaraima; além do aumento da atividade garimpeira, que ensejou nova onda de intolerância contra os indígenas.
Tragédia humanitária
“Tragédia humanitária” é a denominação dada por alguns meios para descrever a situação de violações sistemáticas de direitos dos povos indígenas.
A ação lembra inúmeras violações para descrever o quadro, como o aumento da mortalidade infantil Yanomami, entre 2019 e 2022; a dolosa difusão de armas e drogas promovidas por garimpeiros ilegais como estratégia de cooptação de jovens indígenas. Denúncias de crimes sexuais contra mulheres e crianças indígenas; a contaminação por mercúrio das águas dos rios, que leva ao adoecimento da população; somada às vulnerabilidades epidemiológicas ligadas à situação nutricional dos indígenas.
Garimpo ilegal
No momento em que a devastação da TI Yanomami causada pelo garimpo ilegal assumia trágicas proporções, foi sancionada pelo governador a Lei 1453/21, em fevereiro de 2021, afim de regulamentar o licenciamento para a atividade de lavra garimpeira no estado de Roraima. Inclusive aquela exercida com uso de mercúrio. O ato legislativo, julgado inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal (STF) poucos meses depois, buscou assim legitimar politicamente a garimpagem em terras indígenas perante a sociedade local. Em suma, o MPF aponta que o Estado atuou por intermédio de seus poderes Executivo e Legislativo, como incentivador de crimes ambientais. E também como fomentador do discurso de desprezo às vítimas.
Em julho de 2022, o estado reincidiu na promoção de uma lei inconstitucional, que tem por consequência a segregação étnica. A Lei nº 1.701/22, também sancionada por Denarium, proibia os órgãos de fiscalização de destruir e inutilizar bens particulares apreendidos nas operações. A lei foi cautelarmente suspensa em outubro pelo STF e declarada inconstitucional de forma unânime em fevereiro deste ano.
Outras medidas
Em 2017, o MPF ajuizou uma Ação Civil Pública diante das evidências de intensificação da atividade garimpeira na terra yanomami. Pleiteando a instalação de três bases de proteção etnoambiental (Bapes) no território. Em abril de 2020, com a persistência da invasão garimpeira e os perigos sanitários decorrentes da pandemia de Covid-19, o MPF ajuizou outra ação. Ela pedia a completa retirada de garimpeiros ilegais. A peça também cita iniciativas de outras entidades de defesa dos povos indígenas e de direitos humanos.
Por meio de tais medidas, entre julho de 2020 e dezembro de 2022, foram proferidas 18 decisões, acórdãos e resoluções pelo STF), Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), Seção Judiciária de Roraima (JF/RR), Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Todas total ou parcialmente descumpridas pela União e suas entidades vinculadas.
Gravidade dos descumprimentos
Portanto, o MPF assevera que a gravidade dos sucessivos descumprimentos de decisões judiciais foi acentuada pelo fato de as autoridades terem conhecimento das atividades ilícitas na região e, ainda assim, enfraquecerem a capacidade estatal de fiscalização e estimularem garimpeiros ilegais por meio de declarações públicas que empoderaram organizações criminosas.
Por fim na ação, o MPF requer que o pedido de retratação pelo governador seja feito meio de vídeo com manifestação oral. E este deve ser divulgado nos sites oficiais, assim como nas redes sociais do Governo do Estado de Roraima.
Além disso deve ocorrer o valor da indenização por danos morais. Ela deverá cair em conta vinculada à Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai). A Funai deverá aplicar em ações administrativas a favor dos povos da Terra Indígena Yanomami. Isso conforme plano que o MPF irá acompanhar e com consulta aos povos atingidos.
Fonte: Da Redação