Coringa: Delírio a Dois é um filme inacreditável.
Não é um elogio.
Simplesmente, não dá para acreditar que essa continuação foi feita pela mesma equipe do sucesso de 2019. O ator Joaquin Phoenix, o diretor e roteirista Todd Phillips, seu parceiro de script Scott Silver, a compositora Hildur Guŏnadóttir, o diretor de fotografia Lawrence Sher, o montador Jeff Groth,.. Enfim, a mesma galera de volta, com uma ou outra mudança substancial. E tudo para quê? Para entregarem uma continuação que não é só muito pior, mas que parece ter raiva de seu antecessor.
Isso porque Coringa (2019) mostrou a origem de um dos maiores vilões dos quadrinhos, fugindo da fórmula dos filmes de super-heróis e bebendo da sujeira urbana do cinema da década de 1970. Tudo com um imenso apuro técnico, um roteiro que nos puxa para a mente de um homem perturbado e uma direção firme na condução e decidida em seu estilo. Já em Coringa: Delírio a Dois é tudo ao contrário: tem uma parte técnica desleixada, um roteiro que nos afasta cada vez mais do filme e uma direção que não decide o que quer contar. Não sabe se quer ser um romance, um musical ou um filme de tribunal.
No final das contas, não importa o gênero escolhido, pois a obra fracassa em todos eles.
Delírio romântico
Na trama, Arthur Fleck (Joaquin Phoenix) está preso, devido aos eventos do primeiro filme, aguardando seu julgamento. Enquanto é designado para uma ala onde os presos cantam em um coral, ele conhece Lee Quinzell (Lady Gaga), com quem inicia um romance improvável. E esse casal é a melhor coisa do filme, mais por causa de seus intérpretes. Joaquin Phoenix continua impecável em sua composição, que só não repete seu êxito de outrora no personagem por causa da limitação do roteiro.
Lady Gaga também parece que só está obedecendo comandos, mas ainda consegue dar uma faceta diferenciada e mais humana à Arlequina. Sua admiração ao Coringa enquanto símbolo é palpável e fica cada vez mais clara no final, em meio a um turbilhão de sentimentos. Se dependesse de Phoenix e Gaga, Delírio a Dois poderia ser o romance mais bizarramente legal do ano, um “Bonnie e Clyde” maluco e contemporâneo. Infelizmente, o diretor e roteirista Todd Phillips não desenvolve esse potencial. E olha que o casal vive repetindo a ideia de não estar mais sozinho, mas são palavras jogada ao vento.
Delírio musical
Falando em maluquice, a parte musical era a grande incógnita do público desde o anúncio da Warner. Afinal, por que um musical? O próprio trailer meio que responde isso, pois sugere que os números musicais sejam delírios de Arthur e Lee – o que é reforçado pelo subtítulo brasileiro. No filme, os números estão nas duas formas: reais e delirantes. O lado bom para quem detesta musicais é que a parte real não é lúdica como em um musical tradicional. Ou seja, você não verá os presos capinando um lote e, depois, largando tudo para cantar e dançar. Só mesmo os astros soltando o gogó e, sim, Arthur dançando sozinho às vezes. Aliás, Gaga convence como uma pessoa comum cantando, deixando no canto sua persona estelar de vencedora do Grammy.
Já a parte delirante é a que mais deve afastar o público, pois é a que mais se aproxima dos outros musicais. Só que, em Delírio a Dois, os números são ruins até para os fãs de musicais, pois não agregam quase nada na trama. O pior de tudo é que saí da sessão sem me lembrar de nenhuma canção. Aliás, minto: tem uma reinterpretação bacana de Lady Gaga de “Close to You”, do The Carpenters. Mas não vale, pois eu já gostava da música.
Está na cara que o musical Chicago (2002) é maior inspiração deste Coringa, já que a obra de Rob Marshall também é ambientada em uma prisão e os números também são representações do estado mental das personagens. Mas nenhum momento chega perto, por exemplo, da canção “Cell Block Tango”, em que Catherine Zeta-Jones e as colegas de cela confessam seus respectivos crimes umas para as outras, movimentando o enredo de forma brilhante. Para cada música do novo Coringa, você implora por um botão de fast forward para passar a cena e a história começar a andar.
Delírio de tribunal
Com seu fracasso como romance e musical, a salvação do longa poderia ser como filme de tribunal, mas nem isso. Com a insanidade e a inteligência do vilão, as cenas de julgamento poderiam ser um palco para ele mesmo brilhar e tentar subverter as regras, fazendo o sistema voltar contra si mesmo. Não acontece nada. Nem mesmo a presença de algumas aparições especiais faz qualquer diferença. E o desperdício da atriz Catherine Keener como a advogada de Arthur é imperdoável.
Contudo, a pior parte desse segmento judiciário é a falta de coragem de explorar a ambivalência da personalidade de Arthur, proposta pela advogada. Nesse sentido, é inevitável a comparação com o antecessor, onde, em determinado ponto da trama, o real e o imaginário confundem o espectador e aprofundam nosso mergulho na mente perturbada do protagonista. Aqui no julgamento, seria a chance de usar um recurso similar para, pelo menos, colocar uma pulga atrás de nossa orelha, mas o tema entra e sai com uma facilidade desgraçada. O mesmo podemos dizer da catarse no final – que, claro, não vou entregar.
Opressão do sistema
O longa é totalmente ruim? Não. Alem do talento da dupla de protagonistas, o ator Brendan Gleeson faz um papel pequeno, mas que dá nuances a um guarda prisional e faz a segunda parceria interessante com Joaquin Phoenix (as cenas com os dois são breves momentos de primor). Na parte técnica, a trilha não mantem a energia de Coringa (que ganhou o Oscar 2020), mas lembra um pouco O Iluminado (1980). O próprio diretor Todd Phillips parece consciente do que tem em mãos, em poucos momentos de brilho, como o enquadramento de Joaquin Phoenix na janela de sua cela.
Vendo isso, parece que o cineasta se sabotou de propósito, porque ele procura combater o que ele mesmo causou em 2019. No primeiro filme, ele nos fez cair na loucura de Fleck, mas sem o eximir de culpa. Naquele filme, ele deixa claro que ressentimentos por si só não transformam ninguém em assassino, a não ser que já haja algo interno pré-estabelecido. Algo que esteja pronto para modelar toda a negatividade de sua vida fracassada a um ponto que pudesse justificar a maldade. Não justifica, mas estávamos no mundo de Arthur Fleck, não no nosso.
Boa parte do público, porem, não entendeu dessa forma e aprovou o Coringa como símbolo de luta contra a opressão do sistema. Então, o apequenamento de tudo nesta sequência parece uma resposta simbólica a todo mundo que viu o Palhaço do Crime como herói.
Julgamento do Século
No fim das contas, o delírio maior foi do próprio cineasta, que pensou que pouca coisa bastava para ser grandioso. Ao pisar em uma marcha maior do que alcançava, Coringa: Delírio a Dois atropelou o próprio legado de Phillips na DC. A química entre Joaquin Phoenix e Lady Gaga seguram o longa, mas não o suficiente para disfarçar a pobreza de enredo e a falta de ideia do que fazer com a Arlequina. As músicas causam mais tédio do que empolgação e o dito Julgamento do Século tem a grandiosidade de uma assembleia de Casa do Estudante. E olha que não faltam referências de filmes bons de tribunal. Ele até poderia ter continuado na década de 1970 e ter revisto Justiça Para Todos (1979), por exemplo. Melhor ainda se revisse As Duas Faces de um Crime (1996), que seria a inspiração perfeita para o que só é beliscado aqui.
A própria escolha de tornar o segundo Coringa em um musical já é uma ousadia por si só. Há quem aplauda essa fuga do lugar comum. Até porque, de fato, fazer desconstruções não é para qualquer um. Mas eu, particularmente, prefiro aplaudir resultados. Todd Phillips tentou e, de certo modo, conseguiu o que queria. Pena que, ao colocar um criminoso na insignificância que merece, acabou fazendo isso com o filme inteiro.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.