Um caso chocante ocorrido em junho de 2023 é tema de um documentário da Netflix. A Vizinha Perfeita (2025) é uma daquelas obras inquietantes que revoltam só de saber que tudo aconteceu de verdade. Trata-se de uma briga de vizinhos, ocorrida em junho de 2023 na Florida (EUA), que terminou em tragédia. Não que esse sentimento seja novo ao assistir um true crime qualquer – incluindo os da própria Netflix. Porem, os sentimentos que o documentário desperta são ampliados por uma certa proximidade.
Isso por causa de um diferencial: quase tudo é contado por imagens das câmeras corporais dos policiais e câmeras de vigilância. A diretora Getta Gandbhir coletou todas as imagens registradas ao longo de dois anos pelas câmeras. Ela juntou tudo, montou uma ordem específica e, por necessidade narrativa, adicionou vídeos dos noticiários da época e algumas filmagens normais, feitas por ela mesma.
O resultado é um documentário simples, eficiente e devastador.
De saco cheio
O filme já começa com o vídeo do fatídico dia (2 de junho de 2023), com a chamada de emergência de uma viatura. Aí corta para 2022 para contar tudo o que houve, desde o início. Somos apresentados a Susan Lorincz, uma mulher branca de 58 anos, que aciona a polícia para reclamar das crianças brincando na frente da casa dela. Ela ainda acusa a vizinha Ajike Owens, mulher negra de 35 anos, mãe das crianças, de ter jogado uma placa de rua contra ela. Owens alega que Susan “aumentou” a história, afirmando que jogou a placa, mas não contra Lorincz – versão corroborada pelos outros vizinhos adultos.

A partir daí, acompanhamos esse ciclo de denúncias de Susan, os policiais interrogando e ouvindo os dois lados e os conselhos para que nada se repita. Em dado momento, dá para perceber que a própria polícia fica de saco cheio de tantas denúncias – e pelos mesmos motivos. Em resposta a uma das reclamações, umas das policiais até fala que prefere crianças gritando e se divertindo que roubando e assaltando. Ainda assim, Susan não para e o incômodo inicial dá lugar a xingamentos contra as crianças. Quando os pais tomam as dores dos filhos, ela chama a polícia também.
Fofoqueiros invisíveis
A intenção principal de A Vizinha Perfeita não é dizer o que aconteceu, nem como aconteceu – com um toque no google você descobre a história inteira, de forma até mais detalhada. O que faz a diretora Getta Gandbhir é apostar no “ver para crer”. Com essas imagens de arquivo, ela nos convida a ser testemunha ocular dessa encrenca de vizinhança, que vai escalonando até chegar a um nível seríssimo e (infelizmente) irreversível. É como se fôssemos vizinhos fofoqueiros invisíveis, vendo de perto as brincadeiras das crianças e as implicâncias de Susan.

O mais interessante em A Vizinha Perfeita é que Gandbhir abre mão de narrações em off, tão comum em documentários para o contexto das cenas. Ela deixa os registros em vídeo falarem por si só. Sem interferências, nem direcionamentos. Tanto que o termo “racismo” jamais é mencionado por alguém, porque nem precisa. Basta ver os testemunhos dos vizinhos dizendo que ela chamava as crianças de “crioulos” e “escravos”, além de “retardados” (sim, rolou até capacitismo). Somente no final, a cineasta toma uma intervenção necessária.
Afinal, ainda que tente uma imparcialidade, toda obra polêmica precisa de um posicionamento. Não que ficar contra uma homicida covarde, racista e capacitista seja difícil. Entretanto, pode acreditar: já tem espectadores que tentam justificar a reação absurda de Susan Lorincz à vizinhança. Um conselho: evite ler os comentários nas redes sociais e nas críticas do YouTube.
Dona do bairro
Essa questão racial já foi denunciada pelo cineasta Michael Moore, no premiado documentário Tiros em Columbine (2002). Na obra, ele mostra como pessoas brancas se aproveitam do racismo estrutural para se livrarem da culpa por qualquer crime por arma de fogo. Bastava dizer que foi uma pessoa negra que cometeu o crime e estava tudo bem: a polícia não seguiria mais com a investigação contra o suposto denunciante. Ou um assassinato “justificado” pelo medo de uma pessoa preta e uma suposta legítima defesa. Só que ele faz isso em forma de narração ou através de uma sátira mordaz, usando uma animação no estilo South Park.

A Vizinha Perfeita é a materialização séria dessa sátira. Aqui, vemos uma mulher que vive armada (metaforicamente, ainda) contra os vizinhos que ela julga infernizarem sua vida. Vive acionando a segurança pública para, supostamente, viver em paz. Segundo as palavras dela, Susan não dá trabalho a ninguém, mas, na prática, comporta-se como a dona do bairro inteiro. Ou seja, desde o início, já sabemos que ela nunca dará o braço a torcer. Tanto que, depois que o pior acontece, ela ainda se coloca como a vítima da história. Como alguém que fez o que fez por (adivinha?) legítima defesa.
É triste e revoltante. É um longa que pode despertar, em qualquer um, a vontade de pular para dentro da tela e perder o réu primário.
Ponto para a Netflix
Fazer um documentário só com imagens de câmeras corporais e imagens de vigilância se tornou um método recorrente, especialmente em curtas-documentários. Como em Incident (2023), que também mostra um crime revoltante só com esse tipo de gravação real. Em 2018, um barbeiro negro foi assassinado por um policial branco de Chicago, em plena luz do dia. Paralelamente, duas imagens opostas ne tela: à esquerda, a revolta dos moradores do bairro que conheciam a vítima; e à direita, os policiais nervosos, mas demonstrando alívio por terem “feito a coisa certa”. Você pode ver esse filme de meia hora duração de graça no Youtube (aqui).

Só que esse curta foi feito inteiramente com imagens de arquivo e legendas, para situar o espectador. Não daria para fazer o mesmo com A Vizinha Perfeita, pois a duração de um longa – uma hora e meia, neste caso – não se sustenta só com os vídeos policiais, sem complementos. Daí a necessidade narrativa das cenas de noticiários – incluindo o veredito do julgamento de Susan Lorincz – e das imagens contemplativas captadas pela diretora, que se posiciona sem apelar para depoimentos ou melodrama barato. As imagens cruas in loco já são tensas e sufocantes o suficiente. Mais um ponto para a Netflix, por apostar naquele que pode ser o próximo vencedor do Oscar de Melhor Documentário, previsto para março de 2026.
Nada justifica
Ao contar a história de uma briga de vizinhança que termina em tragédia, o documentário aborda má convivência, hostilidade, prepotência, ódio, racismo, afrouxamento das leis e privilégio branco (compare com “outras” abordagens policiais e penais, se é que me entende). É sobre pessoas que se aproveitam da ampliação da legítima defesa para atirar em qualquer um, alegando medo de morrer.


Mesmo que Susan tivesse razão sobre as crianças, nada justifica uma resposta tão desproporcional, inconsequente e violenta. Afinal, são só crianças. E a vítima era uma mãe que perdeu tudo de graça, apenas por defender os filhos. É como disse Clint Eastwood no filme Os Imperdoáveis (1992): quando uma pessoa mata outra, tira tudo o que a vítima tem e tudo que ela poderia ter um dia.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.

