Como muita coisa na vida, o Universo Cinematográfico Marvel é bom e ruim. Bom porque é divertido acompanhar a organização do emaranhado de histórias e a força dos elos que as unem. E são histórias de heróis cinematográficos que aprendemos a amar. E é ruim porque, cada vez mais, os filmes do estúdio precisam desses elos para existirem em sua forma completa. Assim, o propósito dessas obras não está dentro delas, mas no Megazord montado pela Marvel, que é o UCM. Embora seja um conjunto incrível de filmes, a sensação de linha de montagem fala alto. Às vezes, dá uma saudade de ver obras DO DIRETOR, não somente DO ESTÚDIO.
Ainda bem que, entre uma engrenagem e outra, a gente ainda encontra a voz de cineastas que transformam uma encomenda em um bicho muito seu. Estão aí para provar James Gunn (“Guardiões da Galáxia”), Taika Waititi (“Thor: Ragnarok”), Ryan Coogler (“Pantera Negra”) e, agora, Sam Raimi com “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”. Já adianto: é o filme mais autoral da história da Marvel e, ao mesmo tempo, o que mais revela esse lado ruim do UCM. Vai do gosto de cada um decidir para qual lado a corda puxa mais.
A minha decisão está nas linhas abaixo.
Diferentes personas
Serei direto ao ponto: “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” é sensacional, frenético e (algo inédito na Marvel) bem assustador. Começa com uma luta estranhíssima acontecendo em algum universo. O resultado disso é a morte de um dos Doutores Estranhos do multiverso (calma, anti-spoilers, isso acontece no começo!) e o arremesso de America Chavez (Xochitl Gomez) ao nosso universo. Quando o nosso Doutor Estranho (íntimo, não?) encontra a moça, precisa protegê-la da mesma entidade maligna que matou a outra versão dele. E, claro, sobreviver desta vez e descobrir o porquê disso tudo.
É a entrada da Feiticeira Escarlate (Elizabeth Olsen, mais maravilhosa que nunca) que pauta o jogo e divide o protagonismo com Stephen Strange. Mesmo assim, Benedict Cumberbatch se mantem como o astro supremo, agora interpretando diferentes personas de um mesmo personagem, todos com maestria. Xochitl Gomez é um suspiro de leveza em um fogo cruzado entre seres muito, mas muito poderosos. E Benedict Wong tem uma importância maior na ação. Contudo, o maior acerto da obra não está na frente, mas atrás das câmeras.
Filme de super-herói?
Embora seja uma peça Marvel, “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” é a cara de seu criador, da testa ao queixo. Dos zoom súbitos ao gore, a assinatura Raimi já é perceptível no primeiro ato, na conclusão da luta contra um monstro de um olho só. E vai crescendo quando a trama avança e ele acrescenta elementos de terror, principalmente no arco da Feiticeira Escarlate. Tem silêncio mórbido, cenas de possessão, demônios, um zumbi inesperado e uma criativa batalha mágica com… notas musicais! Tem referência à própria filmografia (como “Evil Dead: A Morte do Demônio” e “Arraste-me Para o Inferno”) e um momento que me lembrou “Carrie: A Estranha”, de Brian de Palma. É um filme de super-herói mesmo?
Infelizmente, sim e, pior, de um universo compartilhado. Digo isso porque, apesar de eu curtir a Marvel, essa continuação não foi feita para ter vida própria, mas para ser um rito de passagem. Claro que você precisa acompanhar a saga para curtir essa aventura e não há nada de errado nisso. Contudo, essa interdependência dos outros produtos Marvel passou do ponto. Para se ter uma ideia, essa obra parece uma continuação conjunta de “Homem Aranha: Sem Volta Para Casa”, “Vingadores: Ultimato” e as série “Wandavision” e “O Que Aconteceria Se…”. O primeiro “Doutor Estranho” é o que você menos precisa assistir, por incrível que pareça. Mas isso é para a Marvel. O problema do filme em si é outro.
Viagens multiversais
O roteiro é bem direto e, talvez por isso, bem falho. Isso porque o próprio conceito de multiverso, que abre muitas possibilidades, não é 100% explorada. Enquanto esperamos quebrar a cabeça com a aplicação do conceito, o roteirista Michael Waldron (que trabalhou o multiverso da série “Loki”) entrega uma trama estranhamente simples e conveniente. Há uma cena surpreendente que vai pirar os fãs. Só que ela é, digamos, resolvida em pouco tempo. E a própria condição de America de passageira interdimensional pedia mais presença de seus poderes. Não tem como reclamar da Feiticeira Escarlate, mas Waldron focou tanto na força dela que diminui a dos outros – e, desta vez, não é sobre poderes.
Então, por que tudo parece funcionar tão bem? Por que é todo o resto que puxa o roteiro para cima e não o deixa se afogar. É o carisma e atuação de Gomez que salva sua personagem e dá mais pulso à trama. Cumberbatch é que não deixa seu herói se tornar coadjuvante de sua própria história. Olsen é que torna críveis as motivações da Feiticeira. São a fotografia de John Mathieston e a trilha de Danny Elfman que tornam a jornada mais tensa. E é a criatividade de Sam Raimi que potencializa as viagens multiversais, torna a trama interessante e dá vida a um projeto que não a teria com um diretor qualquer.
Veredito
Parece que vimos aí uma cumplicidade entre o poderio de um estúdio e o talento de um diretor, certo? Sim. No quesito artístico, porém, foi uma queda de braço do Universo Compartilhado contra um visionário. Felizmente, o último venceu. “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura” é suco de Sam Raimi, no melhor dos sentidos. Uma obra que faz milagre com uma base frágil e brilha por sua ousadia, mesmo com as traves do UCM. Divirta-se e não perca as duas cenas pós-créditos.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda sexta-feira aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.