No início, tudo parecia caminhar bem. Era 2019 quando *Milena conheceu o homem que viria a ser o pai de sua filha. Antes disso, ele era apenas um cliente frequente no salão de beleza onde ela trabalhava como cabeleireira. A aproximação veio com o tempo. O interesse foi recíproco e, logo, decidiram morar juntos. Ele dizia que seu maior sonho era ter um filho, algo que, segundo ele, a ex-companheira não poderia realizar. Era o início de um novo capítulo, cheio de planos e esperanças. No entanto, Milena sequer imaginava que o conto de fadas, na verdade, mascarava as atitudes de um homem manipulador e violento.
A história de Milena
Essa é a história de *Milena Santana, uma mulher venezuelana, de 36 anos, que buscou acolhimento para sobreviver e sair de um relacionamento com um homem abusivo. (O nome da personagem foi modificado para preservar a identidade da vítima).
Milena também cuidava do pai idoso e tinha um outro filho do primeiro relacionamento. A ideia de unir as famílias parecia perfeita. Viviam bem, com estabilidade no trabalho e uma convivência familiar harmônica. Dois anos depois, o casal realizou o sonho de aumentar a família com o nascimento da filha, em 2022. Mas foi também nesse ponto que a história começou a tomar outro rumo.
O então companheiro começou a demonstrar um comportamento totalmente diferente daquele no começo da relação. O desrespeito começou com mudanças de atitudes, que evoluíram para agressões emocionais e passaram a ser também verbais até que culminou na agressão física.
“Comecei a suportar muita humilhação e desaforo. Quando ele chegava em casa, sentíamos muito medo. Todos se trancavam nos quartos por causa das atitudes dele. Ainda permaneci quase três anos nessa situação por causa da minha filha, pois não conseguia trabalhar, não tinha com quem deixá-la, já que ela não conseguiu vaga na creche”, explicou Milena.
Em uma das brigas, o companheiro a expulsou de casa, mesmo sabendo que Milena não tinha trabalho, dinheiro e muito menos para onde ir com os filhos e o pai idoso. Naquele momento, a cabeleira entendeu que o sonho acabou.
A história de Milena se une a tantas outras mulheres vítimas da violência em Roraima. São Jéssicas, Marias, Joanas e Claudias… mulheres que vivem sob opressão por conta da violência doméstica e que revelam dados alarmantes sobre o assunto no Estado.
Dados
Conforme dados do Atlas da Violência, divulgados no mês de maio deste ano pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), e pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Roraima é um dos estados mais perigosos para mulheres viverem no país, especialmente quando o assunto é violência sexual e doméstica. As informações são referentes ao ano de 2023.
“Pior lugar para mulheres viverem”
Em relação à taxa de feminicídio, o Atlas da Violência apontou que o estado registrou a maior do país, com 10,4 homicídios de mulheres por 100 mil habitantes, que é quase o triplo da média nacional de 3,5. Isso quer dizer que cerca de 31 mulheres foram mortas em Roraima durante aquele ano.
O que também chama a atenção e expõe o preocupante cenário da violência, é que oito em cada dez casos de agressão contra mulheres ocorreram dentro da própria casa. Ou seja, elas foram mortas por pessoas do convívio social, como companheiros, ex-companheiros ou então, outro familiar.
O Atlas da Violência também apontou o contexto social dessas mulheres. Muitas são de regiões periféricas. Outro fato importante é que em grande parte dos casos, as vítimas não tinham histórico de boletins de ocorrência registrados, o que levanta para duas hipóteses: desconfiança do sistema de justiça ou dificuldade para acessar informações sobre como denunciar.
Por fim, outras hipóteses para índices tão altos de violência letal contra mulheres em Roraima se dão por conta do garimpo ilegal. Estudos qualitativos têm mostrado que os espaços de garimpo ilegal se caracterizam pela simultaneidade de práticas criminais, muitas vezes nas chamadas currutelas (vilas improvisadas).
Ausência de autodeclaração
Em Roraima, os dados sobre violência letal contra mulheres podem ser ainda mais alarmantes do que mostram os registros oficiais. O Atlas da Violência destacou que parte dessas mortes pode estar sendo subnotificada, especialmente no caso de mulheres indígenas.
Isso ocorre porque, na ausência de autodeclaração racial ou étnica nos registros, muitas dessas vítimas são classificadas como “pardas”, o que distorce os dados e apaga sua identidade. Essa falha estatística revela uma subnotificação estrutural, que compromete o diagnóstico real da violência de gênero no estado.
Instrumento de Justiça há 25 anos
Em meio a um cenário tão alarmante de violência contra a mulher, a Defensoria Pública de Roraima (DPE-RR) tem se destacado ao longo de 25 anos, como um verdadeiro instrumento de Justiça e esperança. Presente onde muitas vezes a ação da lei parece não chegar, a Defensoria atua com firmeza para garantir que o acesso aos direitos não seja apenas palavras em papel, mas realidade na vida de quem mais precisa.
Especializada da Mulher
E foi para reforçar as ações de enfrentamento à violência, que em 2017, a DPE-RR, anunciou a criação da Especializada na Defesa dos Direitos da Mulher. O foco do trabalho é voltado para o atendimento jurídico às mulheres em situação de qualquer tipo de violência. No núcleo, existe a responsabilidade de orientar as vítimas sobre seus direitos, bem como representa-las ou defende-las em juízo quando necessário. De acordo com dados da DPE-RR, desde o ano de 2018 até junho deste ano, a Especializada da Mulher já atendeu mais de 22 mil mulheres vítimas da violência.
“A Defensoria age para que essas mulheres recebam amparo não só no contexto de assistência jurídica qualificada. A Defensoria passa a ter um papel fundamental na vida delas porque elas começam a receber orientações”, explicou a defensora pública da Especializada de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, Terezinha Muniz.
Veja:

‘A verdadeira casa dos direitos humanos’
Em 2019, a Defensoria foi além e iniciou os atendimentos dentro da Casa da Mulher Brasileira. O setor integra, no mesmo local, serviços de acolhimento e triagem, incentivo de autonomia econômica, espaço de cuidado para crianças, alojamento e outros serviços de apoio à mulher. A casa da Mulher Brasileira está localizada no bairro São Vicente e funciona 24h durante toda a semana.
“A Defensoria tem uma função institucional de trabalhar a prevenção da violência doméstica. A própria lei impõe essa atuação com ações em educação de direitos focadas na violência baseada no gênero. Trabalhamos tanto no âmbito da violência doméstica, sexual e obstetra. A Defensoria é a casa dos direitos humanos“, disse a defensora pública, Terezinha Muniz.
O trabalho é tão importante que, por exemplo, em apenas nos dois primeiros meses do projeto “CAPI Mulher – Novos Fluxos, Novos Rumos” implantado em 2024, mais de 300 sobreviventes de violência doméstica receberam atendimento. O projeto garante que ações sejam protocoladas em até 72H sem que a vítima precise se deslocar até a sede Cível da DPE. Ele oferta atendimento multidisciplinar com foco em questões familiares, como guarda de filhos, pensão alimentícia e divisão de bens.
Salão de Defesa
No entanto, esse é apenas um dos diversos projetos que a Defensoria executa. Um outro destaque é o projeto ‘Salão de Defesa‘ implantado este ano. A proposta é ofertar treinamento aos profissionais da beleza para que atuem como instrumentos de orientação do conhecimento jurídico básico.
A Defensoria entendeu que espaços como salões de beleza criam um ambiente para que, por vezes, a vítima construa um vínculo de afeto e segurança com quem cuida dela. Sendo assim, se esse profissional tiver ferramentas para direcionar e identificar sinais de violência, ele pode orientar esta mulher a buscar ajuda jurídica e de acolhimento. É o que explica a defensora Terezinha Muniz.
“Esse projeto tem o objetivo de criar e ampliar a rede de apoio dessa mulher que se encontra em situação de violência. Começamos a pensar em dialogar com esses profissionais da beleza para que eles saibam acolher mulheres. Quando a mulher vai até o salão fazer as unhas, o cabelo, acaba que se cria um vínculo. Se essa profissional, por exemplo, souber sobre a Lei Maria da Penha, sobre proteção que essa lei garante, ela vai atender essa mulher e orientar na busca de ajuda, como: ‘olha vai na Casa da Mulher Brasileira’ lá tem serviço psicossocial, tem uma Defensoria tem uma delegacia“, disse.
A virada da História de Milena
E foi por meio dos recursos que a Defensoria oferta, que a cabeleireira, *Milena buscou orientação para sair de um ciclo de violência.
“No dia, tivemos mais uma briga com agressão e ele expulsou todos nós de casa. Fiquei desesperada, pois não tinha emprego, não tinha dinheiro, não tinha nada. Uma amiga minha, que é brasileira, me orientou a procurar a Defensoria e fui até lá para receber assessoramento. Eu pensava que, por ser estrangeira, não tinha esse direito. Na Defensoria fui acolhida, tiraram minhas dúvidas e me ajudaram a refletir melhor antes de tomar qualquer decisão. Hoje, minha mente está mais leve e sigo lutando a cada dia”, disse Milena.
Acolhimento e direito de fala
De acordo com Milena, após entender seus direitos, ela resgatou forças para iniciar uma nova vida. Embora ainda esteja no processo de adaptação, ela afirmou que sente que a vida pode sim, ser diferente, e aconselhou outras mulheres a romper qualquer ciclo de desrespeito e violência.
“Foi ali que entendi os meus direitos. Eles (Defensoria) fazem valer todos os nossos direitos, especialmente no que diz respeito à igualdade de gênero, que para eles é fundamental. A justiça social protege a todos nós. Quero dizer às mulheres que estão passando por situações parecidas com a que eu vivi: pulem o muro também. Saiam desse quarto fechado, dessa vida infeliz. Rompam esse ciclo, por vocês e por suas famílias. Tomem decisões e procurem a Defensoria Pública. Lá, vocês encontram o melhor assessoramento, um lugar onde nós, mulheres, podemos tirar dúvidas, buscar apoio e nos fortalecer” finalizou.
O projeto “Conversa na Obra”
Entre as diversas ações para o enfrentamento da violência, a Defensoria buscou intervenções em ambientes onde existe maior número da presença masculina. Por isso, criou em 2025, o projeto “Conversa na Obra: Diálogos sobre masculinidade possíveis e saudáveis”. A ação alcança trabalhadores da construção civil por meio de palestras. Diante desse cenário da violência, o projeto propõe falar diretamente com os homens.
A ideia é desconstruir padrões tradicionais de masculinidade que alimentam a violência, o machismo e o silêncio emocional. É que o momento da palestra cria um espaço para novas formas de expressar a masculinidade, como por exemplo, posturas mais empáticas, cuidadosas e também conscientes.
A defensora Teresinha Muniz explicou que a escolha do espaço levou em conta um ambiente historicamente marcado pela força masculina. A proposta é romper com qualquer estereótipo, criando diálogo e educação em direitos, com potencial real de impactar comportamentos e prevenir a violência.
“O projeto Conversa na Obra alcança o público masculino em todas as áreas da construção civil. Buscamos parceria com o Sinduscon [Sindicato da Indústria da Construção Civil] pois, por meio dele, podemos ter acesso às grandes empresas que empregam uma maior quantidade de homens e ter espaço para falar sobre relacionamento saudável com eles”, explicou.
Além disso, a Defensora esclareceu que o papel do projeto é causar reflexões e nunca apontar culpados. As intervenções acontecem por meio de um psicólogo junto com um defensor. “As oficinas falam sobre relacionamento saudável. Esse homem tem um vínculo com uma mulher e, mesmo que não seja casado, ele tem mãe, irmãs e familiares. Nosso projeto não aponta culpados, mas causa sim reflexões e leva informações”, esclareceu.


Apoio
Conforme o presidente do Sindicato da Industria de Construção (Sinduscon-RR), Clerlânio Holanda, o projeto tem grande contribuição social.
“O Sinduscon se sente honrado em fazer parte desse projeto da Defensoria que orgulha a sociedade e leva temas de relevância que abordam a masculinidade saudável, o respeito às mulheres e também o autocuidado, como por exemplo, o tratamento da saúde mental”, disse Holanda.
Ele também ressaltou a importância de estender o debate para fora do espaço da obra. “A Defensoria levou diálogo para dentro dos canteiros de obras, para levar temas de maior relevância e que temos que trabalhar com essas pessoas que estão no dia a dia nesses canteiros de obras arduamente e que voltam para casa e nos ajudam fora desse canteiro para trabalhar o tema para uma sociedade igualitária e justa”, finalizou.
Retrato vivo e silencioso
A violência contra a mulher não é apenas uma estatística, é um retrato vivo do silêncio forçado das vítimas, em uma sociedade construída sobre um discurso que ignora o valor feminino e, sobretudo, o respeito à vida.
Mas, em meio às histórias de dor, também há espaço para a resistência de quem busca fazer a diferença no enfrentamento da violência. Mulheres como *Milena, que encontraram apoio para romper ciclos, mostram que é possível transformar sofrimento em recomeço. E iniciativas como o Salão de Defesa e o Conversa na Obra nos lembram que existe saída para o ciclo da violência e o caminho começa pelo acolhimento e pela informação.
Enfrentar a violência também é tarefa de todos. É preciso ouvir, agir e mudar posturas dentro do ambiente familiar, para que novas histórias possam ser contadas com começo, meio e um final feliz nos lares de Roraima.
Para denunciar casos de violência, ligue 180. Também é possível acionar a Patrulha Maria da Penha pelo número (95) 98414-4413, o ZapChame no (95) 98402-0502 ou procure a Casa da Mulher Brasileira, em Boa Vista.
Por: Polyana Girardi

