A miss Paola Abache buscava um lugar em que pudesse ser ela mesma, quando decidiu deixar a Venezuela em 2019. Ela deixou a Venezuela tanto por causa da crise socioeconômica que o país enfrenta quanto pela discriminação dentro e fora de sua comunidade, devido o fato de ser uma mulher trans.
“Desde pequenina eu sabia que era uma mulher. Eu me vestia e maquiava escondido para que minha família não soubesse. Sempre gostei das passarelas e de concursos de beleza, e sempre quis ser assim, igual àquelas pessoas que eu via”, diz.
Paola vive no abrigo Waraotuma a Tuaranoko, nome dado pelos próprios moradores, que em português significa “local onde descansam os Warao”.
O Tuaranoko é um abrigo que integra a Operação Acolhida, em Boa Vista, capital de Roraima. A criação do local ocorreu para responder às necessidades específicas da população indígena refugiada no Brasil. Em novembro deste ano, essa população atingiu a marca de 10 mil pessoas. Desse total, 66% corresponde a etnia Warao, grupo étnico mais antigo da Venezuela, o qual vive na região delta do Orinoco há pelo menos oito mil anos. Outros 27% são da etnia Pemon, e o restante é composto pelas etnias Kariña, Eñepa e Wayúu.
Ao descobrir sobre o concurso de Miss em Boa Vista, Roraima, a jovem Warao de 23 anos se interessou muito. “Na minha cabeça eu pensava: ‘participe, isso vai ser bom para você’. Mas ao mesmo tempo eu me questionava, já que minha nacionalidade não é brasileira, e sim venezuelana: ‘será que posso me inscrever, será que vão me aceitar?’”, disse.
O percurso desde a inscrição até a vitória, no entanto, teve seus percalços. Sem trabalho formal no Brasil, Paola não tinha dinheiro para comprar as roupas necessárias para o desfile ou para fazer sua maquiagem. Contudo, depois de muita mobilização, ela conseguiu dois vestidos emprestados com uma amiga e se preparou para o desfile com outra participante do concurso.
De acordo com Paola, coroada Miss Trans Parada LGBTQIA+ 2023 de Roraima, ela ficou muito nervosa. E mesmo vendo as outras competidoras com vestidos bonitos, ela competiu e ganhou.
“Na hora eu estava muito nervosa. Quando chegou a minha vez, e vi toda aquela gente, tremi muito, meu coração acelerou, e eu olhava para o lado, via as outras participantes mais bem vestidas e montadas. Eu pensava que queria estar como elas, mas não estava. Segui do jeito que estava, competi, fui mostrar que eu também podia estar ali. No fim participei, e ganhei”, relatou.
Nas palavras de Paola, ser uma mulher trans, indígena e refugiada é uma luta, como um desafio do qual ela se lembra todos os dias. “Creio que significa mostrar às outras pessoas que nós trans somos iguais, pessoas como eles, carne e osso como eles”, diz.
Além disso, ela afirma se sentir mais segura no Brasil, e diz que aqui aqui as pessoas são mas respeitosas e amáveis. Quando anda pelas ruas, diz não sentir medo. “Agora onde vivo cada um respeita suas decisões, seu modo de viver, de se vestir”, diz
O caso de Paola se enquadra nas diretrizes do direito internacional dos refugiados, visto que qualquer pessoa com fundado temos de perseguição por raça, religião, nacionalidade, opinião política ou participação em um determinado grupo social deve ser protegida.
Do mesmo modo, a situação também se aplica à população LGBTQIAP+ quando seu país não tem capacidade ou disposição para garantir seus direitos sociais básicos, expondo essa comunidade a diversos riscos, inclusive de saúde e vida.
Mas ainda que distante de sua terra de origem, a jovem mantém uma relação estreita com sua comunidade indígena. No ano de 2021, por exemplo, foi eleita cacica de seu antigo abrigo, Nova Canaã, também localizado em Boa Vista, Roraima, que acolheu a população indígena refugiada e migrante em Boa Vista.
Durante sete meses sua responsabilidade foi manter o grupo firme e sem conflitos, aconselhar pessoas, além de garantir a organização e limpeza do espaço, o qual tinha capacidade para até 250 pessoas.
Ela conta que de início se sentiu insegura e achou que a escolha do restante do grupo não era uma boa ideia. “Eu era muito nova, não sabia como trabalhar com isso, me senti perdida”, diz. Com o tempo, e vendo outros colegas e caciques trabalhando, foi aprendendo mais e conseguiu manejar bem a situação, explica Paola. “No fim foi uma experiência espetacular, ainda que muito difícil, pois me ensinou sobre como liderar um grupo”, diz.
Uma de suas maiores inspirações é a deputada federal Joenia Wapichana, nascida em Roraima e pioneira em muitas frentes: primeira mulher indígena formada advogada no Brasil, primeira mulher indígena eleita deputada federal e primeira mulher indígena no comando da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai).
“Quando eu a vejo, me chama atenção, quero ser como ela, quero defender o meu povo e lutar por ele. Como ela faz, eu quero fazer”, diz.
A jovem conta que também se inspira em Maria Wapichana, primeira miss indígena de Roraima, e Lilith Cairú, indígena Wapichana e eleita miss trans Roraima em 2020.
Sobre o Brasil, Paola diz se encantar com a alegria, o idioma, e a diversidade cultural que existe, como a dança, música, comida, jeito de se vestir, inclusive em relação às comunidades indígenas.
Daqui em diante, seu principal plano é acessar o ensino superior e estudar Direito, com foco em Direitos Humanos. Para isso, atualmente, está cursando a modalidade Educação de Jovens e Adultos – EJA, e o próximo passo é a universidade.
“Na Venezuela em não consegui o que eu queria, mas aqui, se deus quiser, eu quero conseguir alcançar todos os meus objetivos”, diz.
Fonte: ACNUR
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