O Dia da Consciência Negra, na semana passada, não deveria ser dia de polêmica. Contudo, a polarização política atingiu um grau nunca visto antes, com comentários nas redes sociais que não nos dão um segundo de paz. Sempre aparece um ou outro tentando deslegitimar a luta antirracista, ora compartilhando o famoso vídeo do Morgan Freeman sobre raça humana, ora debochando do feriado de 20 de novembro, dizendo que foi um feriado inventado (porque os outros não foram inventados, imagina…).
O que esse pessoal não sabe é que, quanto mais fazem isso, mais tornam necessários dias como o de quarta-feira passada (comemorado no Brasil em homenagem a Zumbi dos Palmares). E a arte é uma grande aliada na promoção dessa causa.
ANTIRRACISTAS… SÓ QUE NÃO?
O cinema já nos deu alguns filmes racistas (“O Nascimento de uma Nação”, “A Canção do Sul”, “Uma Escola Muito Louca”) e vários antirracistas (“No Calor da Noite”, “12 Anos de Escravidão”, “Django Livre”), mostrando que Hollywood melhorou o modo de encarar a sociedade com o passar dos anos. Entretanto, alguns longas podem ter ficado só na boa intenção mesmo, causando o efeito exatamente inverso. Ou seja, obras que, ao abordarem a questão negra, acabaram sendo acusados de piorar o racismo, contestados por críticos, movimentos antissegregacionistas ou pela própria classe artística. É possível fazer um cinema militante da causa negra e acabar promovendo o contrário?
Existem vários filmes com esse tipo de controvérsia. Então, vou deixar uma lista de cinco deles aqui embaixo, estando alguns deles no coração dos cinéfilos. Todos tem duas coisas em comum: 1) foram lançados para falar sobre racismo e 2) foram contestados não só por críticos, mas também por grupos do próprio movimento racial.
Assista, interprete e decida se a mensagem da obra deu certo ou se foi mesmo um tiro pela culatra.
GREEN BOOK (2018)
O filme: O faz-tudo Nick Vallelonga é contratado por Don Shirley, um pianista preto que lhe dá um guia sobre os lugares onde ele pode se apresentar sem ser discriminado por sua cor.
Disponível no Amazon Prime.
Controvérsia: Nick (que é branco) ensinando Shirley a ser uma pessoa mais negra é o fim da picada. Nessa tensão racial, posta durante um diálogo sobre música, Nick acaba reduzindo a negritude a ouvir Aretha Franklin e Little Richard. Além disso, é incrível que, mesmo com essa temática tão espinhosa, a questão racial aqui seja tratada assim, de forma tão superficial – como na rajada de olhares de vários trabalhadores afro-americanos sobre Shirley, durante uma pausa na jornada. E, no Oscar 2019, bateu uma obra bem mais incisiva sobre o tema: “Infiltrado na Klan”. O cineasta Spike Lee ficou fulo da vida, não pela derrota em si, mas por ter perdido (mais uma vez) para um filme sobre racismo, com uma pessoa dirigindo para outra, feito pela ótica branca.
Meu parecer: concordo. Porem, como um desserviço à luta antirracista, Green Book não chega a ser tão nocivo assim. Para mim, é só um filme que não mereceu o Oscar de Melhor Filme.
HISTÓRIAS CRUZADAS (2009)
O filme: a jornalista Skeeter (Emma Stone) quer escrever um livro com relatos de empregadas negras do Mississipi, começando com Aibileen (Viola Davis) e Minny (Octavia Spencer).
Disponível no Disney+.
Controvérsia: duas palavras: white savior. Ou “Complexo do Salvador Branco”, onde o herói da história é uma pessoa branca, que acaba salvando a pessoa negra das mazelas sociais. Skeeter seria a savior, enquanto as empregadas seriam as que precisam segurar as mãos dela para serem salvas. A atriz Viola Davis já revelou seu arrependimento por ter feito sua personagem. “Eles investiram na ideia do que significa ser negro, mas… atendendo ao público branco”, disse a atriz, acrescentando que sentia que uma parte dela estava traindo seu povo.
Meu parecer: concordo. White savior sem nem disfarçar, com as empregadas pretas sendo coadjuvantes em suas próprias histórias. Vale como entretenimento, especialmente na vingança de Minny através de um bolo, digamos, peculiar (“Coma minha m****!”).
CRASH: NO LIMITE (2005)
O filme: várias histórias paralelas mostram a discriminação étnica: 1) Uma dupla de policiais, um negro e uma latina; 2) outra dupla, ambos brancos, mas um deles é racista, que comete abuso contra… 3) um casal negro rico; 4) uma dupla de bandidos negros, em que um deles vi e se vitimizando, mas eles assaltam… 5) um casal branco rico que estava caminhando nas ruas, dentre eles um político que procura apoio da comunidade negra para sua candidatura; 6) um trabalhador latino que acaba confrontando… 7) uma família de persas que tenta ganhar a vida nos EUA. As coisas ficam devastadoras quando as histórias se chocam.
Disponível para aluguel.
Controvérsia: em uma entrevista com Alexandro González Iñarritu à Revista Set, em 2006, foi revelado que a obra foi comparada a seu Babel. Então, o cineasta mexicano retrucou: “(…) ‘Crash’ é um filme racista sobre racismo. Espero que meu filme jamais seja associado a ‘Crash’, do qual desgosto profundamente”. Eita!
Meu parecer: concordo em partes. Ao escrever Crash, o diretor e roteirista Paul Haggis se encheu dos mais variados estereótipos sobre os pretos e esparramou na obra, sem sutilezas. Por outro lado, isso até combina com a natureza de colisão do enredo, já que as figuras ali não devem em nada aos racistas do mundo real. Também não mereceu o Oscar, mas aí já é outro papo.
CONDUZINDO MISS DAISY (1989)
O filme: uma senhora judia de 72 anos não quer ter um chofer, mas seu filho Boolie (Dan Aykroyd) contrata Hoke (Morgan Freemnan) mesmo assim. Aos poucos, o motorista e a senhora Daisy criam uma amizade. Lembram quando Spike Lee disse que perde toda vez que alguém dirige para outro, quando Infiltrado na Klan foi derrotado por Green Book no Oscar? Era uma referência a esta obra de Bruce Beresford que levou o Oscar 1990, enquanto Faça a Coisa Certa, de Lee, só foi indicado pelo roteiro.
Disponível no Amazon Prime.
Controvérsia: as próprias posições destas duas obras no tabuleiro da Academia, em 1990, dá o que falar até hoje entre estudiosos de cinema. Faça a Coisa Certa é uma porrada contra o racismo estrutural, enquanto Miss Daisy faz parecer que o vencimento sobre esse mal é bem simples e suave. Como se conhecer melhor uma pessoa negra fosse o bastante para vencer a própria discriminação. Não é.
Meu parecer: também concordo em partes. Apesar de também achar que não é uma grande obra sobre racismo, Conduzindo Miss Daisy é um filme tocante sobre amizade. E, convenhamos, não dá para desprezar os maravilhosos Morgan Freeman e Jessica Tandy em ação.
CÃO BRANCO (1982)
O filme: após atropelar um pastor alemão branco, uma garota adota o animal, mas acaba descobrindo que ele foi treinado para atacar somente pessoas pretas. Uma premissa tão interessante quanto absurda que, infelizmente, foi incompreendida.
Disponível no Amazon Prime.
Controvérsia: ainda na pós-produção, o filme foi alvo de protestos da Associação Nacional para Progresso de Pessoas de Cor (NAACP), que chegou a vistoriar o processo criativo da obra, temendo que Cão Branco inflamasse ainda mais a violência racial. Inclusive, a obra mostra afro-americanos atacados com bastante violência, mas o ponto X da discórdia acontece no final (contar mais seria spoiler). Com medo de retaliações, a Paramount deixou a obra só por uma semana em cartaz em Detroit e a retirou dos cinemas, engavetando o filme na cara dura. Desiludido, o diretor Samuel Fuller foi para a Europa e nunca mais voltou a Hollywood.
Meu parecer: discordo com força. Cão Branco é, sem dúvida, o melhor e mais injustiçado filme da lista. Esta obra-prima de Fuller é um grande libelo antirracista que, de tão mal interpretada, acabou cancelando sua carreira na América. Estava com 70 anos e mais em forma artística que nunca. Pena que seja controverso até hoje.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.