Críticas ao Oscar de “Anora” são um festival de bobagens

A coluna de hoje analisa a atual onda de críticas a “Anora”, filme vencedor do Oscar 2025, que infectou as redes sociais.

Críticas ao Oscar de “Anora” são um festival de bobagens

Todo mundo que vem acompanhando o pós-Oscar viu Mikey Madison se tornar o novo alvo do hate brasileiro, por causa da derrota de Fernanda Torres para a protagonista de Anora. Mesmo com a vitória histórica do brasileiro Ainda Estou Aqui como Melhor Filme Internacional, o povo brazuca insiste em enxergar o copo meio vazio, enchendo as redes sociais de críticas tanto à atriz americana quanto à própria produção da Neon. Até aí, tudo bem. Ninguém é obrigado a gostar de filme premiado, nem de artista premiado. Além disso, o desdém a qualquer adversário que vencesse o Brasil, em qualquer categoria, já era esperado e não é um problema por si só.

A questão está no nível das críticas. Se algumas pessoas dizem que Anora não mereceu o Oscar por ser um filme raso e que romantiza a prostituição, outros dizem que a obra hiperssexualiza o corpo de Mikey Madison, com uma galera questionando a “função narrativa” de cada rebolado da protagonista. Outros acusam a Academia de etarismo por terem trocado uma atriz de 61 anos – a Demi Moore – por uma novinha de 25 – a Mikey Madison.

Ainda há quem diga que a história do Oscar de Gwineth Paltrow se repetiu, quando Fernanda Montenegro perdeu por Central do Brasil. Isso sem falar na comparação com outros filmes. Já li que Anora é uma versão sexual de Uma Linda Mulher (1990) e que, se o filme merece o Oscar, então o brasileiro Bruna Surfistinha (2011) também merecia.

Em todos esses anos nessa indústria vital, analisando comentários de filmes por usuários de redes sociais, eu garanto: nunca vi tanta bobagem na minha vida.

Sexo exclusivo

Anni e Vanya: só felicidade

Antes de apresentar minhas colocações a cada absurdo desses, vamos falar um pouco sobre Anora. No filme de Sean Baker, Anni (Mikey Madison) é uma trabalhadora do sexo que, por sua fluência no idioma russo, é escolhida por seu chefe para atender a clientela russa. Assim, ela conhece Vanya (Mark Eydelshteyn), um filhinho-de-papai russo que está visitando Nova York. Entretanto, o que começa com sexo casual evolui para o sexo exclusivo. Depois, a vontade de não voltar mais para a Rússia e, por fim, um pedido de casamento. Tudo embalado pela versão remixada de “Greatest Day” – em uma das combinações mais perfeitas entre música e um filme recente.

Jovens, impulsivos, transantes e, agora, casados, Anni e Vanya passam a viver uma eterna e tórrida lua-de-mel, como se não houvesse amanhã. Até que os pais de Vanya descobrem o casamento, pegam o primeiro voo à América e o mundo real puxa o tapete de Anni com força. Ela sente essa queda de forma vertiginosa e caótica. Até essa queda se completar, ela se vê em um mar de confusão e incertezas, mas com muita determinação de não perder seu casamento e não tirar o pé no mundo novo que encontrou e do qual adorou fazer parte.

Barco furado

Anni e sua aliança: símbolo

Anora tem duas partes. A primeira apresenta sua protagonista, sua vida pessoal e seu trabalho em satisfazer homens tarados. Sim, o filme deixa claro que isso é um trabalho e não verbaliza se ela está gostando ou não. Nem precisa: o pedido de casamento nem faz ela pensar duas vezes antes de abandonar o ofício e cair na noite com seu novo esposo. Tudo regado a passeios, bebida e muito sexo – com uma cena engraçada de Anni ensinando o marido a, digamos, desacelerar.

A segunda parte começa, literalmente, em um coito interrompido e isso diz tudo sobre o restante da obra. Não vou entregar, mas basta dizer que as situações pela qual Anni passa são bem opostas às que foram até ali. Mesmo com tudo sinalizando que ela entrou em um barco furado, ela não se dá por vencida. Inclusive, há várias cenas em que ela faz questão de exibir sua mão munida com a aliança dada por Vanya, com seu rosto exalando um misto de orgulho e felicidade. Em outras palavras, ela não quer voltar à vida de antes. Ela quer ficar. E a paulada da cena final desmente qualquer um que disse que a prostituição é romantizada e mais ainda quem comparou com Uma Linda Mulher. Definitivamente, não é um conto de fadas.

“Como pode?”

Sean Baker dirigindo o elenco de “Anora”

Já a comparação com Bruna Surfistinha não quer dizer nada além da mais pura ignorância, misoginia e discriminação com as profissionais do sexo. Como se todos filmes protagonizados por elas fossem a mesma coisa e devessem ser relegadas a um patamar inferior. Aliás, algumas pessoas até me abordaram pessoalmente me questionando sobre Fernanda Torres ter perdido o Oscar para uma atriz que interpretou uma prostituta, com aquela cara de “como pode?”.

Não está proibido fazer cara feia para o Oscar de Mikey Madison, mas vamos ser mais artísticos e menos moralistas, por favor. Se é ridículo ver a Academia premiar alguém que, supostamente, não foi a melhor do ano, é mais ridículo ainda questionar o prêmio por causa de um papel polêmico.

Sobre a tal hiperssexualização, parece mais uma reclamação sintomática de uma geração que abomina sexo no cinema. A protagonista trabalha com o corpo, em um filme voltado ao público adulto. Aquele é o mundo de Anni, oras. E as cenas de sexo acontecem somente com Vanya – e só na primeira parte do filme. Alem disso, a própria Mikey Madison dispensou o coordenador de intimidade (profissional que direciona as cenas +18), afirmando que confiou no trabalho do diretor e que já sabia o que fazer e como fazer.

Elogios femininos

Emma Stone e Lily James: defensoras do sexo

Também reclamaram da nudez de Emma Stone em Pobres Criaturas (2023), o que levou a atriz a fazer questão de declarar que ela (que também é produtora do filme) teve poder de decisão no set. ELA quis fazer as cenas adultas, incluindo o corajoso nu frontal. Enquanto isso, as redes sociais pululando de gente condenando o diretor Yorgos Lanthimos por “fazer isso com ela”.

Outra que defende sua safadeza em tela é a atriz Lily James, intérprete de Pamela Anderson em Pam & Tommy, minissérie da Hulu. Ao jornal The Sun, ela disse que os momentos sexuais entre ela e o ator Sebastian Stan são essenciais para a história. E nem poderia deixar de ser, já que o programa gira em torno de uma sex-tape vazada por um sujeito vingativo.

O que James, Stone e Madison tem em comum? Fizeram as cenas de sexo que quiseram fazer e enfureceram uma galera que se incomodou por elas à toa. Mesmo porque não foram só os homens que gostaram de Anora. Dentre vários exemplos de elogios femininos, destaco os da crítica de cinema Fabiana Lima, que publicou um excelente texto sobre a correlação da obra com o neoliberalismo e o compartilhou no Instagram (aqui…) e no Threads (…e aqui).

Aliás, este último canal, infelizmente, tambem virou um bueiro de gente detonando o longa e que chama qualquer homem que gostou do filme de incel ou redpill. Radicalismo é pouco. Agora o pobre do crítico Waldemar Dalenogare – que é um gentleman – vai ser chamado de redpill por ter dado nota 9 para Anora, no seu canal no YouTube

Impulsionada pelo hit

Michelle Yeoh em “Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo”: Oscar aos 60

A própria trama de A Substância, pela qual Demi Moore foi indicada, foi usada como paralelo para “explicar” o funcionamento da indústria cinematográfica no tratamento às mulheres. Afinal, o esnobe de Moore parece a confirmação dessa trama e do quanto a diretora e roteirista Coralie Fargeat estava corretíssima em sua denúncia ao etarismo. Isso porque, no filme, a protagonista atinge os 50 anos e é substituída por uma mulher mais nova. À primeira vista, a comparação com os fatos faz todo sentido.

Aí você pesquisa a idade de todas as vencedoras do Oscar de Melhor Atriz do século XXI e descobre que somente sete delas estavam na casa dos vinte quando venceram. Hillary Swank (Meninos Não Choram), Charlize Theron (Monster), Reese Whiterspoon (Johnny e June), Natalie Portman (Cisne Negro), Jennifer Lawrence (O Lado Bom da Vida), Brie Larson (O Quarto de Jack) e Emma Stone (La La Land) representam menos de 30% de atrizes da mesma faixa etária de Mikey Madison, das últimas 25 vitoriosas. Todo o resto era de trinta anos para cima.

“Anni” não venceu o Oscar por ser mais nova, mas por ter sido impulsionada por um filme que foi abraçado pela Academia. E, sim, isso pode atropelar desempenhos mais prestigiados. Aconteceu em 2023, quando – a sessentona – Michelle Yeoh, que, impulsionada pelo hit de Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, superou Cate Blanchett, monstruosa em Tár. É injusto? Sim, concordo. E você pode discordar à vontade da preferência da Academia (eu mesmo teria dado o Oscar para Fernanda Torres, independente de torcida), mas acusar a Academia de etarismo, por causa de Anora, é um baile de desinfomação. Entendeu, Cláudia Raia?

Papel de stripper

Demi Moore em “A Substância”: foi quase

Falando em sessentona, uma pergunta: Demi Moore poderia ter recebido um Oscar à lá Al Pacino em Perfume de Mulher, já que é tão comum ser premiado menos pelo filme em si e mais pelo conjunto da obra? Absolutamente, não. Adoro a atriz desde Ghost: Do Outro Lado da Vida, mas sua condição na constelação hollywoodiana é parecida com a de Keanu Reeves, um ator não tão talentoso, mas muito querido pelo público. A filmografia da atriz está repleta de atuações de medianas para baixo. Dói dizer isso, mas A Substância é, na verdade, uma exceção.

Infelizmente, deu azar. Aliás, um azar tão grande que ela foi execrada por seu papel de stripper em Striptease (1996) e, em 2025, perdeu o Oscar para uma atriz que interpreta uma… stripper. Esse senso de humor do destino foi outra pauta encontrada pelos “críticos” das redes sociais, em que acusam a Academia de hipocrisia, sendo que a Academia não tem nada a ver com repercussão negativa de Striptease. A “culpa” foi de sua contraparte, com a obra premiada no Framboesa de Ouro, incluindo Pior Filme e Pior Atriz.

Medalha de bronze

Gwyneth Paltrow e seu Oscar controverso

Falando na estatueta, o efeito Gwyneth Paltrow não se repetiu. Afinal, a atuação de Mikey Madison foi uma das mais elogiadas do ano e é, oficialmente, a mais premiada desta temporada – sim, mais que Demi Moore. Anora virou o favorito de última hora, em uma disputa muito acirrada com Conclave e O Brutalista. Não havia chance para os outros. Ainda Estou Aqui era um dos azarões na categoria principal, mas tinha espaço para Fernandinha em Melhor Atriz, ainda mais depois do Globo de Ouro. Mesmo assim, a que mais se aproximou do Oscar, fora Madison, foi a atriz de A Substância mesmo. A única semelhança com o Oscar 1999 era que Fernanda Montenegro também perigava perder para outra atriz – no caso, Cate Blanchett por Elizabeth. Se o Oscar fosse as Olimpíadas, seria como se as duas Fernandas fechassem com medalha de bronze.

E parou por aqui, pois Gwyneth Paltrow em Shakespeare Apaixonado não amarra as botas de Mikey Madison em Anora. Ser um dos piores vencedores do Oscar em todos os tempos é um estigma que sequer deve chegar perto da obra de Sean Baker. E, neste ano, não existiu nenhum O Resgate do Soldado Ryan para colocar a vitória de Anora em cheque (disputa acirrada, lembra?). Só o tempo dirá como o vencedor deste Oscar ficará a longo prazo, ao contrário de Shakespeare, que já saiu do Oscar 1999 envelhecido.

Pântano virtual

No momento em que você está lendo esse texto, continuam surgindo novas opiniões controversas sobre Anora nas redes sociais, com uns louvando o vencedor do Oscar 2025, outros indignados com a premiação. Uns achando o filme profundo e outros, raso. E, no meio disso, várias mulheres revoltadas com homens que defendem a obra, jurando que nenhuma mulher a defende. Tentei participar de uma discussão dessas no Threads, mas acabei bloqueando a pessoa na primeira ironia. Afinal, o tempo é curto para aguentar gente abusada.

Anora é polêmico mesmo e não é a pornografia que estão desenhando. É um drama, com momentos de comédia, que toca em assuntos difíceis e encontra em Mikey Madison uma porta-voz talentosa e entregue à sua personagem sonhadora, que tomba no abismo social e na sola do sapato de quem pode tudo. Você não viu tudo isso? Não gostou? Achou chato? Ok, gosto é gosto. Só evite julgar quem gostou. E, quando fizer uma análise dos possíveis porquês, use tópicos realmente relevantes, como a rejeição da Academia a filmes de horror – que pode ter custado o Oscar de Demi Moore – e o baixo índice de atuações premiadas fora da língua inglesa – que pode ser o caso de Fernanda Torres.

Ou faça como a própria Mikey Madison e evite redes sociais. Em um pântano virtual que virou essa guerra de opiniões bobocas e arrogantes, pode ser a melhor opção mesmo.

Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.

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