Fernanda Torres traduz o grito sufocado de “Ainda Estou Aqui”

A coluna de hoje fala sobre o filme “Ainda Estou Aqui”, especialmente da atuação de Fernanda Torres. Boa leitura!

Fernanda Torres traduz o grito sufocado de “Ainda Estou Aqui”

Fernanda Torres é a melhor atriz de 2024 até o momento. Não é exagero. O que ela fez em Ainda Estou Aqui, em cartaz nos cinemas desde 7 de novembro, é algo para ser apreciado e – por que não? – estudado. Ela mostra porque uma atuação de verdade não é aquela que faz questão de escancarar as lágrimas, mas que as contêm. É uma linguagem corporal impressionante que mistura emoções muito distintas entre si – e a gente consegue identificar cada uma delas. Seja uma expressão de alívio e, ao mesmo tempo, derrota em um banheiro; seja um olhar que junta dor profunda com uma ponta de esperança.

Não preciso de mais linhas para dizer qual a maior força da nova obra de Walter Salles. Claro que a história (real) do desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva tem várias outras qualidades. Porem, não tem como deixar o trabalho gigante de Torres em segundo plano. É ela quem carrega o filme através de uma personagem que carrega seu próprio mundo em pleno desmoronamento, mas que não fica mais leve. Ao contrário, quanto mais esse mundo perde suas estruturas, mais pesado fica.

Selton Mello em “Ainda Estou Aqui”: despedida sem saber

Já falei sobre suas chances no Oscar 2025 aqui na coluna há algumas semanas. Porém, Ainda Estou Aqui tem um papel bem mais relevante, que é ser visto pelos brasileiros. Portanto deixemos o Oscar de lado, por enquanto, e vamos focar no que mais importa: o filme.

Mau pressentimento

Baseado no livro autobiográfico de Marcelo Rubens Paiva, o filme é ambientado no Rio de Janeiro do início da década de 1970, auge da ditadura militar no Brasil, governado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici. Eunice (Fernanda Torres) e Rubens (Selton Mello) são pais de cinco filhos e vivem uma vida aparentemente normal. A parte inicial mostra a rotina da família, com os filhos registrando os momentos felizes com uma câmera de vídeo, ora na praia, ora em uma festa caseira. O diretor Walter Salles se prolonga nesse início para convidar o público a conhecer essa família e a fazer parte dessa rotina de felicidade.

Por outro lado, enquanto essa vida passa, também passam alguns sinais. O mais chamativo é a cena que dá rosto ao cartaz de Ainda Estou Aqui. Sem dar spoiler, basta dizer que é o momento em que Eunice percebe algo tenebroso se aproximando. Na verdade, algo que todo mundo já sabia que estava acontecendo, mas que, agora, ativa o mau pressentimento de Eunice de modo mais íntimo.

Cartaz de “Ainda Estou Aqui”: sinais

Esse mau sinal se concretiza quando alguns sujeitos estranhos visitam a casa da família e “convidam” Rubens a acompanhá-los. Ele se despede de esposa e filhos e sai.

Foi a última vez que ele foi visto.

Segurando o choro

A partir daí, Eunice se incumbe de duas missões: 1) investigar o paradeiro do esposo (que, como sabemos, não terá sucesso); e 2) cuidar dos cinco filhos, sem perder o chão. Ou, pelo menos, não aparentar que está perdendo o chão. E é curioso (e comovente) ver como essa questão do contraste da aparência ganha uma conotação forte e necessária para Eunice. Em uma cena mostrada no trailer, uma das filhas pergunta se ela está bem e ela responde, sorrindo: “Tô sim, tô bem”. Em outra, um fotógrafo pede para que ela e os filhos não sorriam na foto, mas ela insiste que todos devem sorrir, sim.

Eunice observa os agentes: dor

Entretanto, Eunice não consegue mentir para si mesma – muito menos para o público. Vê-la segurando o choro faz a gente querer chorar por ela. Vê-la sufocando o próprio grito faz a gente querer gritar por ela. Afinal, como ela consegue se conter tanto, em uma situação tão desesperadora? Não temos como saber, porque o que ela passou exigiu uma força que, talvez, ela nem soubesse que tinha. Diante de um momento tão desumano no Brasil e que pegou essa família desprevenida, ela resistiu. Tudo traduzido de forma tocante e arrebatadora pela interpretação de Fernanda Torres. Um trabalho que faz o silêncio mais expressivo de uma atriz neste ano ser o reflexo de um vazio torturante, deixado pelo “convite” macabro que tirou Rubens dali.

Melhor parceria

Mais conhecida pelos papeis cômicos, especialmente nas séries Os Normais (2001-2003) e Tapas & Beijos (2011-2015), Torres tem uma longa carreira na atuação dramática, sempre talentosa. Começou no teatro, televisão e cinema ainda na adolescência. Tinha 15 anos quando estreou na novela Baila Comigo (1981), de Manoel Carlos, e 17 quando fez Inocência (1983), onde viveu a personagem-título.

Três anos depois, tornou-se a primeira brasileira a ser premiada como Melhor Atriz no Festival de Cannes, pelo filme Eu Sei que Vou te Amar (1986), de Arnaldo Jabor. Foi na década seguinte que trabalhou pela primeira (e segunda) vez com Walter Salles, em Terra Estrangeira (1996) e O Primeiro Dia (1998). Entre um e outro, ainda deu tempo de participar de O Que é Isso, Companheiro? (1997), indicado ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro; e de ver sua mãe (a lenda Fernanda Montenegro) e Salles no Oscar 1999, por Central do Brasil.

Fernanda Torres em “Terra Estrangeira”

Mais de 25 anos depois, atriz e diretor voltam a trabalhar juntos na melhor parceria da dupla. De um lado, Salles dirige Ainda Estou Aqui com uma empatia e sensibilidade dignas do psicólogo Carl Jung (“Ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”). Do outro, Torres traduz o grito sufocado de uma esposa que teve parte de seu coração arrancada, súbita e violentamente; e de uma mãe que envolve os filhos em uma redoma invisível que ela precisou construir, protegendo-os de qualquer consequência possível.

A importância de não esquecer

Além da grande direção de Walter Salles, o roteiro de Murilo Hauser e Heitor Lorega é brilhante, a parte técnica é impecável (destaque para a ambientação e a trilha sonora) e o elenco tem um empenho coletivo muito bonito, em especial as breves participações de Selton Mello e Fernanda Montenegro, que, como a Eunice idosa, complementa e estende a performance da filha, espiritualmente.

Ainda assim, Fernanda Torres é a maior força do filme. Sua expressão facial e seu olhar já dizem tudo que precisamos saber. É atuação de verdade, meus amigos.

Casal Paiva: lembranças

Ainda Estou Aqui não é um filme sobre a ditadura militar em si, mas sobre uma família que resistiu a um ferimento gravíssimo e irreversível, disparado impiedosamente por esses Anos de Chumbo. É, também, sobre a importância da construção e preservação de memórias. Inclusive, vendo as cenas de Eunice assistindo aos vídeos antigos com a família (anos depois do sequestro de Rubens), lembrei-me de Viva: A Vida é uma Festa (2017), uma animação sobre a importância de não esquecer. Isso porque é a nossa lembrança que mantem os espíritos dos nossos entes queridos vivos no outro plano.

Precisamos de Eunice

Se for assim mesmo, como mostra a animação da Pixar, pode apostar que, no outro plano, o casal Paiva está mais brilhante, forte e inatingível. Especialmente com o projeção internacional da obra de Walter Salles, já que, agora, o mundo inteiro também passará a se lembrar deles.

E, com eles, lembrar de uma época obscura. A tragédia dessa família representa as cicatrizes de todas as famílias que também perderam alguém. Infelizmente, com as redes sociais, essas cicatrizes doem a cada vez que aparece alguém exaltando os governos militares, como se aquele regime só perseguisse “vagabundo” – como fazem questão de dizer por aí.

Por isso que Ainda Estou Aqui é tão necessário, pois precisamos nos proteger dessas pessoas vis. Mais do que nunca, precisamos de Eunice. Precisamos aprender a resistir. De preferência, sorrindo.

Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.

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