“Guerra Civil” e o poder ambíguo do fotojornalismo

A coluna da semana fala sobre o papel do fotojornalismo no filme “Guerra Civil”, de Alex Garland. Boa leitura!

“Guerra Civil” e o poder ambíguo do fotojornalismo

Em um determinado momento do filme Guerra Civil, em cartaz no cinema desde a semana passada, a personagem Lee Smith (interpretada por Kirsten Dunst) está mergulhada na banheira, enquanto é atormentada por flashbacks. São imagens de horror que só o fotojornalismo de guerra pode conceber. A diferença é que as imagens doem mais no autor das fotos que no público-alvo.

É disso que trata a nova obra de Alex Garland (Ex-Machina, Aniquilação). Estrelado por Dunst e Wagner Moura, Guerra Civil aborda um futuro distópico, em um país tão devastado que beira o pós-apocalipse (tem uma cena de rodovia abandonada que parece ter saído da série The Walking Dead). Nessa realidade, grupos separatistas entram em fogo aberto contra o governo dos EUA, que virou uma terra sem lei.

Kirsten Dunst e Cailee Spaeny: perigo

A missão da fotógrafa Lee e do repórter Joel é conseguir uma declaração do presidente da República. Sem celular no país e muito menos Internet, eles precisam viajar de Nova York a Washington de carro, levando o colega veterano Sammy (Stephen Henderson) e a aprendiz Jessie (Cailie Spaeny). Ou seja, é um misto de road-movie e thriller de ação, que tem uma missão bem clara: mostrar o poder do fotojornalismo. Para o bem (coletivo) e para o mal (individual).

Única arma

Guerra Civil não se encaixa como um filme de ação convencional. Na verdade, nem é sobre a guerra do título, o que pode decepcionar quem espera ver tiro, porrada e bomba o tempo todo. É sobre a coragem de testemunhar e registrar acontecimentos, participar da construção da memória coletiva e mobilizar a reflexão da sociedade, através do fotojornalismo. Tanto que os protagonistas não são soldados, mas jornalistas. Mesmo assim, eles parecem correr os mesmos riscos de quem está fardado. A diferença é que única arma que eles tem é a câmera fotográfica.

Ambiguamente, a mesma “arma” que abre os olhos do mundo é a mesma que pode corroer as mão de quem a segura. O drama pessoal de Lee Smith, somado à jornada com os amigos, lembra muito o verídico Clube do Bangue-Bangue, grupo de fotojornalistas sul-africanos que atuou no início da década de 1990 – também em uma guerra civil. Dois deles morreram de forma trágica: Ken Oosterbroek foi assassinado e Kevin Carter (autor da famosa foto de um menino e um abutre no Sudão do Sul, de 1993) tirou a própria vida. E a carta-testamento deste último só corrobora a mensagem do roteirista e diretor Alex Garland.

Foto de Kevin Carter (1993)

Vítimas de guerra

Falando nessa foto, seu autor foi muito questionado, já na época, por ter priorizado a foto ao invés de ajudar a criança. É algo delicado que merece uma discussão, bem como também mostra o quanto a busca pela imparcialidade jornalística é incompreendida e até confundida com desumanidade por quem não é jornalista. Mais ou menos o que acontece com alguém que não é profissional da saúde e que se espanta com médicos ou enfermeiros que não se emocionam com pacientes moribundos, por exemplo.

Por outro lado, a história de uma outra famosa imagem do fotojornalismo de guerra teve um final feliz. Você se lembra da foto da menina nua chorando que virou símbolo da Guerra do Vietnã? Foi tirada por Nick Ult, em 1972. Ele a levou a um hospital e ela passou por diversos tratamentos de pele, mas nunca se recuperando completamente das queimaduras de napalm. De toda forma, a jovem Phan Thị Kim Phúk cresceu e se dedicou a ajudar crianças vítimas de guerra. Profundamente grata, ela e Ult viraram amigos.

Foto de Nick Ult (1972)

Anestesia emocional

Atualmente, o fotojornalismo ganhou novas formas com as redes sociais. Porém, em situações caóticas, a preferência de qualquer pessoa com telefone celular é gravar um vídeo. Embora pareça mais completo, o vídeo amador comum não tem o olhar necessário para criar uma narrativa consistente e passar a mensagem necessária. Ao contrário do que os “filmadores” podem pensar, os fatos não dizem por si só, pois cada pessoa os interpreta de sua própria forma. Nesse sentido, é preciso uma mediação responsável e que seja capaz documentar de modo impessoal.

Você pode até não concordar com as condutas de Kevin Carter ou da fictícia Lee Smith no filme, mas o que precisamos entender é que essa anestesia emocional não é uma escolha, mas uma consequência natural. E isso não significa que os profissionais não sintam nada. Guerra Civil mostra esse outro lado. Assim como a protagonista, o fotojornalista jamais esquece o que viu e, dependendo do quanto viu, sofre uma pena psicológica perpétua. Ainda assim, para o bem da sociedade, é preciso fotografar, é preciso que alguém testemunhe. Mesmo em um ambiente onde as imagens deixaram de viralizar.

Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.

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Thays Cunha

Que saudades desse coluna <3

Thays Cunha

Que saudades que eu estava dessa coluna. <3

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