Quem assina a plataforma Disney+ percebeu que algumas animações antigas contém um aviso antes do início. Escolhendo “Peter Pan” (1953), por exemplo, o assinante encontra a seguinte mensagem:
“Este programa inclui representações negativas e/ou maus tratos de pessoas ou culturas. Estes estereótipos eram incorretos na época e continuam sendo incorretos hoje em dia. Em vez de remover esses conteúdos, queremos reconhecer o impacto nocivo que eles tiveram, aprender com a situação, e despertar conversas para promover um futuro mais inclusivo juntos”.
Isso porque o longa sobre o menino que queria crescer contém estereótipos sobre os povos indígenas. E não só ele, mas também “Dumbo” (1941), que tem arquétipos dos pretos; “A Dama e o Vagabundo” (1955), dos orientais; e “Fantasia” (1940), com uma cena em que uma centaura preta está lixando o casco do centauro branco. Para ser mais racista, só faltou o black face. Esses tipos de representação eram vistos com tanta naturalidade, na época, que para qualquer coisa ser considerada racista, era preciso que a discriminação fosse muito, mas muito mais evidente.
Canção Sul
Foi o caso de “A Canção do Sul”, cujo enredo se passa logo após a Guerra da Secessão, que fala sobre o tio Remus (James Baskett). Ele era um senhor negro livre que conta histórias para o jovem Johnny (Bobby Driscoll). Como o título sugere, é ambientada no sul dos EUA, que, como bem sabemos, era a porção mais racista do país. E a avó do garoto é proprietária de uma plantação de algodão, onde a comunidade preta vive trabalhando e cantando alegremente, celebrando a falta de espaço para problemas.
Percebeu o absurdo da última frase acima? Quando digo que é sobre “falta de problemas”, as canções falam isso abertamente (“…deixe a chuva cair/ deixe o vento soprar/ o que você quer é em casa ficar/ os problemas sempre passam…). O próprio tio Remus reage com saudade do passado, quando ele conversa com Johnny e diz que as coisas eram “melhores” antigamente. Mais de uma vez. Um olhar carinhoso e saudosista para um mundo onde, na verdade, os pretos só serviam para cumpriam ordens egocêntricas e desumanas. Porem, quem conhecer o período só por essa obra deve pensar que é tudo balela.
Jornais repudiavam
A coisa era tão evidente que, já na época, jornais como The New Yorker publicavam matérias de repúdio, denunciando o racismo da obra da Disney. Como a obra foi um sucesso (para um custo de 2 milhões de dólares), a Disney tentou defender sua obra e iniciou a passada de pano mais longa de sua história: relançou o filme nos cinemas em 1956 (décimo aniversário de “A Canção do Sul”), em 1972 (50° aniversário dos estúdios Walt Disney), em 1973 e, por fim, em 1986.
Desta última vez, tentou matar três coelhos de uma tacada. Alem de comemorar o aniversário de 40 anos da obra, a Disney aproveitou a ocasião para vendê-la como um longa mal compreendido e até a inverter sua fama, dizendo que “A Canção do Sul” era uma lição de… tolerância. Por fim, juntou tudo em um pacote para promover a Splash Mountain, uma atração da Disneyworld baseada no filme (sim, tivemos uma atração inteira baseada na obra mais racista da Disney). Como estavam na era Reagan, a aceitação dos americanos não deveria ser tão difícil.
Saiu do catálogo
Hoje, nem a Disney mais aceita. “A Canção do Sul” não está no catálogo do Disney+ e nada indica que ela estará um dia. Com o pensamento dos novos sucessores desse império cada vez mais distante do passado, o estúdio está mais inclusivo e mais combatente da desigualdade étnica. A ponto de fecharem as portas do Splash Mountain e, com a melhor das previsões pós-pandemia, voltar à ativa com o tema da Princesa e o Sapo, que apresentou a primeira princesa preta da Disney em 2009. Uma louvável tentativa de reparação, ainda que tardia Inclusive, pelo impedimento da entrada no cinema de James Baskett e Hatie McDaniels (de novo!), na estreia em Atlanta.
Oscar
Ah, o filme: “A Canção do Sul” é ruim. Tem uma história fraca e uma trama secundária (e animada) que quase não agrega ao enredo de Johnny. Contudo, faz um bom uso da tecnologia ao ter uma das primeiras interações entre animação e live-action, tem uma música grudenta – “Zip-a-Dee-Doo-Dah”, vencedora do Oscar – e boas atuações de James Baskett e Bobby Driscoll e uma ponta de Hattie McDaniels (“…E o Vento Levou”, outro filme racista). Tem o revolucionário diretor de fotografia Greg Tolland (“Cidadão Kane”). E pronto. Não precisa se lembrar da mensagem. As novas gerações devem agradecer.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda sexta-feira aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.