Em fevereiro de 2017, eu estava no Twitter quando vi uma publicação do crítico de cinema Rodrigo Salem citando “Get Out!” como o melhor filme do ano até aquele momento. Ainda estávamos no início do ano, mas minha curiosidade foi atiçada com sucesso. Intitulado “Corra!” no Brasil, a obra do estreante Jordan Peele chegou aos cinemas tupiniquins só em maio. Minha amiga e eu pagamos para ver. Quando as luzes se acenderam, nossos queixos ainda estavam no chão.
Isso porque está cada vez mais difícil algum filme causar isso. Afinal, a chichêzada tomou tanta conta do cinema de horror que não dá mais para se surpreender. A mesma história com outra roupagem, crianças malignas, pais divorciados que precisam se unir para proteger os filhos do mal, narrativas ocas e arrastadas (para “justificar” a duração do longa), jump scares fajutos e outras cositas mas.
E, do nada, chega um produto original, inteligente, criativo, sarcástico, bem realizado e com elenco afiadíssimo. Mais ainda, tem uma mensagem repassada de um jeito que não é visto nem em dramas pretensiosamente densos. Por isso, no meio de tanta repetição, inclusive em outros gêneros, “Corra!” caiu como uma bomba.
Tãaaaaaao legais
Para quem não conhece, o longa é sobre Chris (Daniel Kaluuya) e Rose (Allison Williams), um casal inter-racial que está prestes a visitar a casa de campo dos pais dela. Dean (Bradley Whitford) e Missy (Catherine Keener) são os pais de Rose, que acolhem o genro muito facilmente, sendo amistosos demais, empáticos demais (inclusive, exaltando o ex-presidente Barack Obama). O genro fica lisonjeado, mas continua ressabiado.
Enquanto eles apresentam a casa a Chris, o jovem se depara com a segunda estranheza: o casal de empregados domésticos, Georgina (Betty Gabriel) e Walter (Marcus Henderson). Dizer que eles se comportam como servos é pouco. As expressões de ambos parecem robóticas – com direito a avarias e tudo. Por que eles agem assim? E por que os sogros são tãaaaaao legais? Esse mistério é desvendado aos poucos e revela uma realidade que ele nunca imaginou. Para ser sincero, nem nós.
What a f***?
O desenvolvimento das ideias é fascinante. Cada passo avançado pela trama é calculado para gerar tensão e uma curiosidade desgraçada cada vez maiores. Por exemplo, quando o protagonista avista um outro rapaz negro, que faz um exibicionismo esquisito a um grupo de velhos brancos, Chris verbaliza o que nós, do lado de cá, já estamos pensando: What a fuck?. Quando as dúvidas se dissipam, o impacto não está somente na revelação em si, mas também na agregação desta com uma denúncia racial sagaz, sarcástica e muito forte.
A porção cineasta de Peele brilha tanto quanto seu texto. Ele conduz a narrativa de “Corra!” como um maestro, pontuando quando cada elemento deve entrar na “partitura” e o tempo exato que deve durar. Estereótipos raciais, uma parada policial, uma xícara de chá, telefones celulares,… Nada escapa da captura imaginativa do diretor/roteirista, já que ele interliga as energias desses elementos para montar um roteiro orgânico e muito bem convertido em imagens e ritmo. Coisa de gênio.
Roteiro do século
Para coroar de vez a obra, as atuações estão espetaculares, principalmente Daniel Kaluuya, que segura bem como um protagonista desconfiado e que sabe que está acuado, e Betty Gabriel, que dá um tom assustador e ambíguo à empregada de comportamento estranho. Pena que somente ele foi indicado ao Oscar. Aliás, a presença do filme na premiação foi uma excelente notícia, já que foi lançado no início do ano e, portanto, longe do calor das premiações e apostas. Venceu merecidamente o prêmio de Melhor Roteiro Original.
Mais que a Academia, no entanto, o que mais fez bem a “Corra!” foi o tempo. Quanto mais envelhece, melhor fica e mais evidente se torna sua importância como uma arte que ultrapassa gêneros. Ou seja, é drama, comédia, terror, crítica social, a constatação do imenso talento de seus envolvidos e um dos melhores filmes desde a virada do milênio. No ano passado, o Sindicato de Roteiristas dos EUA o elegeu como o Melhor Roteiro do Século. Isso com cinco anos de lançamento recém-completados. E aposto que ainda falaremos sobre ele nos próximos anos, porque nenhum outro terror atual conseguiu enconstar nisso.
A crítica completa estará em breve no canal Tomada Um.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda sexta-feira aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.