“Medida Provisória”, estreia de Lázaro Ramos, é murro seco no racismo

A coluna de hoje fala um pouco sobre “Medida Provisória” e o impacto de sua grande mensagem contra o raciscmo. Boa leitura!

“Medida Provisória”, estreia de Lázaro Ramos, é murro seco no racismo

É estranho perceber que, após tantos anos trabalhando com a arte audiovisual , só agora o ator Lázaro Ramos dirige seu primeiro filme de ficção. Uma carreira que começou no início do século e que vem acumulando sucesso, reconhecimento e, principalmente, um grande legado até aqui, sobretudo sobre racismo.

Claro que ainda precisou pagar um micaço em 1998 com “Cinderela Baiana” (sim, aquele da Carla Perez), mas a sequência foi surpreendente. Apareceu em “Sabor da Paixão” (2000), obra americana filmada no Brasil, e o vingativo  “As Três Marias” (2002), sempre como coadjuvante. Bastou a chance de protagonizar “Madame Satã” (2002) que Lázaro Ramos entrou no rol dos grandes atores do novo século – assim como o parceiro Wagner Moura.

O diretor Lázaro Ramos em ação

Daí foi só sucesso: “Carandiru”, “O Homem que Copiava”, “Meu Tio Matou Um Cara”, “Cidade Baixa”, “Ó Paí, Ó” e outros. Fora as séries e várias novelas e, sem dar tempo, dirigiu peças teatrais, videoclipe e documentários. Logo, já estava na hora de começar um longa metragem, não é? Eis que “Medida Provisória” marca sua estreia com o pé direito e a mão da fuça de quem ainda trata racismo como brincadeira. O que acontece porque, muitas vezes, a gente deixa.

Distopia ou realidade?

Na trama de “Medida Provisória”, que se passa em um futuro próximo, Antônio (Alfred Enoch) é um advogado que luta pelos direitos das pessoas de melanina acentuada (nova designação para pessoas pretas). Porém, uma indenização simbólica a uma vítima da escravidão dá errado, agravando as tensões raciais. Com a desculpa de resolver o problema, o Governo Brasileiro cria a Medida Provisória 1888 (sacou a referência do número?). Objetivo: deportação massiva das pessoas negras do país.

É uma decisão tão arbitrária e patética que, a princípio, é vista como piada, especialmente por André (Seu Jorge, espetacular). A ficha só cai quando as coisas ficam sérias e os métodos de “convencimento” ganham ares ditatoriais. Claro que não fica por isso mesmo. Mesmo assim, há cenas de cortar o coração e que nos fazem refletir sobre o racismo na sociedade. Ainda mais atualmente, com uma nação que chama de mi-mi-mi qualquer levante contra esse comportamento imundo que é a discriminação racial, muitas vezes disfarçado de imparcialidade.

Síndrome de John Wayne

Tenho certeza que muita gente vai se identificar com algumas das piores figuras do filme, mas nunca admitirão isso. A principal delas é Isabel (Adriana Esteves), a funcionária responsável por levar a cabo a tal medida, que é uma mulher que afirma que só está fazendo seu trabalho. Ou Dona Izildinha (Renata Sorrah), que nega ser racista porque tem pessoas pretas no seu círculo de convívio. São tipos tão desprezíveis e verossímeis que dariam uma boa esquete da Blogueirinha do Fim do Mundo, personagem da atriz Maria Bopp, que faz vídeos nas redes sociais satirizando as atitudes mais hipócritas do Brasil. Inclusive, recomendo que a sigam no Twitter.

Renata Sorrah e Adriana Esteves em uma cena odiosa

Por outro lado, há uma galera que recusa essa verossimilhança. Na minha sessão mesmo, teve gente saindo da sala e dizendo que aquilo não existe no país. Como há 70 anos, quando o ator John Wayne assistiu ao faroeste “Matar ou Morrer”, escrito por Carl Foreman, roteirista perseguido pela caçada anticomunista nos EUA. Wayne, que era conservador e apoiador do Macarthismo, chamou o filme de antiamericano, já que sua trama era algo que não acontecia na América, segundo ele.

Corto meu dedo se essa Síndrome de John Wayne não acionou a carapuça dos conservadores daqui, alegando que “Medida Provisória” não existe na vida real. Sérgio Camargo, ex-chefão da Fundação Palmares, foi um que pediu boicote à obra, alegando que Lázaro Ramos estava atacando o presidente Bolsonaro. E nem aparece algum presidente no filme.

Ato de coragem

Isso mostra o quão profundo foi o dedo na ferida. O roteiro escrito a oito mãos, inclusive de Ramos e Aldri Anunciação (autor da peça original “Namíbia, Não!”), usou um microcosmo para trazer um problema enraizado no solo nacional. Mostrando uma violência literal, o diretor arranca a raiz e mostra a podridão a um público dividido entre o choro/empatia e a vergonha/negação. É uma obra forte delineada também pelo elenco. Isso porque Alfred Enoch e Taís Araújo transmitem, com precisão, o sufocamento nesse ambiente polarizado. Emicida faz uma ponta de luxo e dona Diva Guimarães é um doce. Flávio Bauraqui e Mariana Xavier tem participações pequenas, mas interessantes. E sem palavras para Seu Jorge e Adriana Esteves, que tem o melhor embate psicológico da obra, na cena da inscrição.

Alfred Enoch, Taís Araújo e Seu Jorge: precisão

A cereja do bolo é a exaltação da negritude. Ela não é verbalizada, mas visualizada. A principal amostra é um bunker com tantos detalhes que pode requerer outra sessão para pegar todas as referências artísticas. Por fim, uma trilha sonora que precisa ser ouvida, com destaque à grande voz de Elza Soares, e uma cena final que poderia ser resumida em uma palavra: resistência. Até porque a própria existência dessa adaptação é um ato de coragem. Assim, Lázaro Ramos passou de nível não apenas como artista, mas também elevou uma voz já poderosa na luta contra o racismo. E, atrás das câmeras, já começou com um murro seco em qualquer participante desse crime contra a humanidade.

Lázaro, pode continuar batendo. A gente deixa.

Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda sexta-feira aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema. 

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