Nos primeiros vinte minutos do filme francês Emilia Perez (2024), um chefe do narcotráfico sequestra uma advogada e lhe pede que o ajude a “desaparecer” da vida do crime, de um modo completamente inusitado: mudando de sexo. Mas por que fazer uma cirurgia de redesignação sexual? “Inúmeras vezes eu pensei em me matar, mas não seria justo desaparecer sem ter vivido a própria vida”, explica. Assim, mataria dois coelhos de uma paulada só: fugiria sem deixar rastros e, de quebra, realizaria um sonho pessoal.
A premissa já é instigante por si só, o que convida o espectador a ver no que vai dar. Afinal, será possível deixar o passado totalmente para trás? E, após o procedimento, é possível remodelar a personalidade de uma pessoa que já cometeu tantos crimes? Todas essas cartas são postas na mesa pelo diretor e roteirista Jacques Audiard. Com a protagonista inspirada em um capítulo do romance Écoute (2018), de Boris Razon, Emilia Perez mistura drama e musical e é a grande aposta da Netflix para a temporada de prêmios de 2025. Aliás, é o representante oficial da França para uma indicação ao Oscar de Melhor Filme Internacional e já é considerada a favorita pela imprensa.
Em outras palavras, Emilia Perez é a pedra no sapato do Brasil na temporada.
Readaptação à prova
Ambientada no México, a trama do filme começa quando a advogada Rita (Zoe Saldaña) recebe uma proposta de dinheiro fácil por um telefonema desconhecido. Frustrada e sem grana, ela topa se encontrar com a pessoa misteriosa. Porém, ela descobre que a pessoa em questão é um famoso e perigoso líder do cartel mexicano, Manitas del Monte (Karla Sofia Gascón), mas que planeja sair de cena definitivamente. E isso inclui abandonar sua esposa Jessi (Selena Gomez). A missão de Rita é ajudar o criminoso a se tornar uma mulher, algo que ele sempre quis, mas nunca pôde fazer no mundo de onde veio. Em troca, a advogada volta para casa sã e salva, com uma bolada na conta bancária.
Embora Rita seja a aparente protagonista, o epicentro do enredo é a trajetória de Manitas para se tornar Emilia. Não, o filme todo não é sobre ela tentando fazer a redesignação, até porque ela já acontece na primeira metade da obra. A questão principal é se, na prática, Emilia é capaz de abandonar um passado que a atormenta. Ter sido homem não é “o” problema, mas ter sido o homem que foi. O que coloca sua readaptação à prova é a impossibilidade de desviar de um mundo que a relembra, constantemente, de sua antiga persona criminosa. O modo com que ela lida com essa difícil transição é o mote da segunda metade do longa – e um passo decisivo para “matar” Manitas e vestir sua nova pele de vez.
Manifestações líricas
Emilia Perez tem três grandes qualidades. A primeira é a bem colocada mistura de drama com musical, sem sair da força temática. Os números são introduzidos de forma elegante na narrativa, de modo que evita qualquer quebra de foco – mesmo em momentos supostamente inapropriados. A trama continua seguindo em frente, enquanto as músicas são manifestações líricas dos conflitos pessoais de cada personagem. Não é novidade para quem é fã de musicais e que já se deliciou com obras como Sweeney Todd: O Barbeiro Demoníaco da Rua Fleet (2007) e La La Land (2016). Contudo, é preciso deixar claro para o público geral para dar uma chance e, pelo menos, prestar atenção nas letras.
Inclusive, é a segunda qualidade da lista: as canções em si. Não há uma música ruim. Além de embaladas por excelentes melodias, as letras cantam o que os diálogos não podem falar diretamente. Na música “Lady”, Zoe Saldaña faz um belo dueto com o ator Mark Ivanir (que interpreta Dr. Wasserman), mostrando o embate entre o idealismo de Rita e o ceticismo do cirurgião responsável pela redesignação de Emilia. Karla Sofia Gascón também manda bem, tanto como Manitas (em “Deseo”) quanto como Emilia (“Por Casualidad”). E “Mi Camino”, cantada por Selena Gomez, tem tudo para ser indicado ao Oscar de Melhor Canção.
Duas pessoas
Esse trio de atrizes é a terceira grande qualidade de Emilia Perez. Zoe Saldaña abraça uma personagem dividida entre fazer o que acha certo e ajudar uma pessoa de caráter duvidoso – sem saber se sairá viva desse processo. Ela está convicta de que é, sim, uma ajuda como nenhuma outra que já fez na vida, o que acaba criando um laço eterno com sua cliente. Selena Gomez faz uma boa companhia, embora seja o laço mais frágil do trio. Ela é uma mulher que não se conforma com a ausência repentina de Manitas, apesar de conseguir se sair sem ele.
Entretanto, nenhuma supera o trabalho primoroso de Karla Sofia Gascón, que interpreta duas pessoas de sexos diferentes com muita habilidade. Não dá para enxergar em Manitas a mulher que se torna depois. Não pela questão masculino/feminino, mas pela diferença da figura aterradora que ela representa antes da cirurgia e a mulher que luta pela redenção depois. Seu talento fica mais evidente quando Emilia não consegue soltar completamente a mão de parte de uma vida que não lhe pertence mais. Gascón já está indicada ao Globo de Ouro de Melhor Atriz em Filme de Comédia ou Musical e tem tudo para estar no Oscar também.
Aliás, Emilia Perez é o filme mais indicado nesta premiação. E é aí que mora o perigo.
Campanha massiva
Na última segunda-feira, o filme Ainda Estou Aqui, de Walter Salles, recebeu duas indicações ao Globo de Ouro: Melhor Filme em Língua Não-Inglesa e Melhor Atriz, para Fernanda Torres. Foi uma grande vitória do cinema brasileiro, que poderá trazer mais holofotes ao Brasil no restante da temporada de premiações.
Emilia Perez, porém, pode impedir o prêmio para o drama da família Paiva. Os primeiros comentários da mídia especializada já dão como certa a vitória da obra francesa no Globo de Ouro, na categoria de Melhor Filme em Língua Não-Inglesa. E a Netflix está fazendo uma campanha massiva para tentar emplacar seu longa não só para Melhor Filme Internacional, mas, também, para Melhor Filme. Se a Sony Classics quer mesmo que Ainda Estou Aqui vença Emilia Perez, terá que emplacar a obra na categoria principal também (como já expliquei nessa matéria aqui).
O longa foi exibido no Festival do Rio em outubro, mas estreará só em fevereiro de 2025 nos cinemas brasileiros.
Veredito
Minha opinião? Adorei, mas prefiro Ainda Estou Aqui. Apesar da trama interessante, o capricho técnico e o envolvimento do elenco, o thriller/musical da Netflix não tem a densidade da obra de Walter Salles.
De toda forma, Emilia Perez é um bom drama e um ótimo musical, com uma trama diferente, carregada de músicas muito boas e atuações fantásticas, que podem dar a primeira indicação ao Oscar de Melhor Atriz a uma mulher trans. É um filme sobre vínculos (de diversas formas), amarras sociais, luta pela felicidade, arrependimento e reparação. E, principalmente, é sobre os sacrifícios de quem busca de viver a própria vida.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.