
A Dreamworks tem uma história com a Academia que ninguem vai tirar dela: foi o primeiro estúdio a ganhar o Oscar de Melhor Animação. A vitória de Shrek (2001) inaugurou a categoria no Oscar 2002, quando o gênero havia disparado. Isso porque, no final do século passado, outros estúdios alem da Disney decobriram a mina criativa que viraram os desenhos animados, com os lançamentos da Fox (Anastácia, Titan A.E.), Warner (A Lenda de Camelot, O Gigante de Ferro) e a Dreamworks (Formiguinhaz, O Príncipe do Egito). Pois não é que o estúdio tirou a honra da Disney ou da Pixar de estrear a categoria?
Depois disso, as duas “derrotadas” viraram o jogo e levaram vantagem. Dos 22 prêmios seguintes de Melhor Animação, a Pixar levou metade. Os outros onze se dividiram entre a Disney (Frozen, Operação Big Hero, Zootopia e Encanto), Warner (Happy Feet), Studio Ghibli (A Viagem de Chihiro e O Menino e a Garça), Sony (Homem Aranha no Aranhaverso), Nickelodeon (Rango), Netflix (Pinóquio de Guillermo del Toro) e Aardman (Wallace & Gromit: A Batalha dos Vegetais). Este último ainda teve o dedo da Dreamworks, que o coproduziu.
Neste ano, Robô Selvagem foi elogiado pela crítica, tornou-se o grande vencedor do Annie Awards, o “Oscar das animações”, e é o favorito ao Oscar (tradicional) de Melhor Animação.
Contudo, Flow, uma produção da Letônia, ficou ainda mais elogiada e faturou o Globo de Ouro de Melhor Animação. Mais que isso: também está indicado a Melhor Filme Internacional. Curiosamente, lançado por um estúdio de nome similar: Dream Well Studio.
Apesar da Pixar estar representada por Divertida Mente 2, os grandes rivais do Oscar não são as emoções de Riley, mas duas criaturas selvagens: um robô e um gatinho.
Emoções inesperadas

Baseado no livro de Peter Brown, Robô Selvagem começa com um objeto caindo do céu ao meio de uma selva e vários animais curiosos se aproximando. O objeto se revela uma robô perdida (voz de Lupita Nyong’O). Como ela não sabe de onde veio, a robô, que se identifica como Roz, programa-se para se adaptar a um ambiente só com animais selvagens e se esbarra em um filhote de ganso, que a adota como mãe. Aos poucos, Roz ganha emoções inesperadas e aprende a se relacionar com toda a fauna – começando com a tradução da linguagem de cada bicho. Aí entra o trabalho de voz do resto do elenco, com Pedro Pascal dublando Astuto, a raposa.
A beleza e a boa pegada com a construção de um amor familiar improvável são a praia do diretor Chris Sanders (Lilo & Stitch, Como Treinar Seu Dragão). Em Robô Selvagem, ele envolve o espectador com uma narrativa dinâmica e empolgante, que nunca ameaça se repetir. A evolução emocional de Roz é palpável e cada vez mais inevitável. Afinal, ela própria é envolvida com a natureza exuberante e que atiça sua curiosidade de forma exponencial. Também, com o trabalho visual belíssimo da obra (o melhor da carreira do cineasta), quem não?
Maior chance
Chris Sanders é veteraníssimo na animação – foi designer no desenho Muppets Babies, de 1984 – e fez parte ativa do Renascimento da Disney. Trabalhou nas estórias de A Bela e a Fera (1991), Aladdin (1992) e O Rei Leão (1994); escreveu Mulan (1998); e estreou na direção com Lilo & Stitch (2000), seu último trabalho na Disney e sua primeira indicação ao Oscar de Melhor Animação.

Aliás, Sanders foi indicado por todas as animações que fez. Migrou para a Dreamworks e foi responsável por Como Treinar Seu Dragão (2010), Os Croods (2013) e, agora, Robô Selvagem (2024). Essa é sua maior chance de ganhar o Oscar, já que a história de Roz é a favorita na categoria, após se consagrar no Annie, no dia 9 de fevereiro.
Entretanto, ainda existe uma ameaça, também selvagem.
Planeta inundado

Flow tem uma premissa ainda mais simples: um gatinho tentando sobreviver a um planeta inundado. No início, já percebemos se tratar de um mundo pós-apocalíptico. Não há seres humanos, embora haja vários vestígios de uma humanidade pregressa – como estátuas e embarcações. É como se a Terra estivesse abandonada e deixada aos animais. Afinal, são estes os protagonistas, já que o felino é acompanhado de um cachorro, uma capivara, um lêmure e um pássaro-secretário (uma ave africana). Todos ficam junto à deriva em um barco e descobrindo a importância da convivência e da cooperação.
Não há bichos antropomorfizados, tipo o Simba (O Rei Leão) ou Muchu (Mulan). Não tem diálogos. Somente latidos, miados e outros sons de animais. Ou seja, diferente de qualquer animação já vista.
É um conceito ousado por si só, simples em sua idealização e deslumbrante na realização. Os cenários são grandiosos e encantadores, que faz a gente se importar com os bichos e se apaixonar pelo jeito com que eles interagem entre si, diante de um vazio gigantesco e assustador do mundo que restou a eles. Não dá para não ficar curioso em ver o próximo passo deles, considerando o comportamento particular de cada animal.
Primeira indicação
É fácil perceber que tudo o que vemos em tela é fruto de muita pesquisa, já que a fauna desenhada parece resultado de captura de movimentos, de tão realista que é o agachamento instintivo de um gato assustado, por exemplo. Não deve ser fácil reproduzir um bicho real, ainda mais em um gênero impregnado por bicho falantes – e cantantes, no caso da Disney.

Mais desafiador ainda é chegar a um alto nível de animação com um software gratuito – o Blender. Porem, o diretor letão Gints Zilbalodis e sua equipe conseguiram. A beleza e profundidade poética das imagens de Flow possuem uma ressonância épica, que toca a intimidade do espectador sem precisar de uma palavra sequer. Só isso já o torna muito superior a Divertida Mente 2. É cinema no conceito mais imagético da palavra.
Com cinco anos de produção, custando menos de 4 milhões de euros e contando com relativamente poucos profissionais, a animação deu a primeira indicação ao Oscar a uma produção da Letônia. Ou melhor, duas: Melhor Animação e Melhor Filme Internacional. Ganhou o Globo de Ouro de Melhor Animação e o Annie de Melhor Animação Independente.
Para mim, a melhor animação do ano passado.
Homenagem fofa

Robô Selvagem é o favorito ao Oscar de Melhor Animação, conforme o andamento da temporada. Entretanto, favoritismo não é garantia de vitória. Flow é uma ameaça presente e pode surpreender. Ambas as animações estão na minha lista de melhores filmes do ano passado e não ficarei triste se a Dreamworks vencer, mas ficarei mais feliz se a Dream Wells levar esse Oscar inédito para a Letônia.
Claro que ninguém está mais feliz que o próprio Governo do país. Para se ter uma ideia, o Globo de Ouro vencido por Flow está exposto no Museu Nacional de Arte da Letônia. Além disso, o site oficial do governo criou uma página oficial de divulgação do filme mais assistido da história local e os profissionais da obra receberam uma honraria. A homenagem mais fofa, no entanto, é uma estátua do gatinho construída no Monumento da Liberdade de Riga, capital da Letônia, em cima do letreiro com o nome da cidade. E a gente achando que estávamos empolgados com as indicações de Ainda Estou Aqui.
Entendemos. Afinal, ninguém vai tirar essa história da Letônia.
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Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.