Bem antes de Minecraft, games sofreram muito em Hollywood

As adaptações de games tem uma trajetória fascinante no cinema. A coluna de hoje relembra os filmes que traçaram essa rota multimídia.

Bem antes de Minecraft, games sofreram muito em Hollywood

Um Filme Minecraft é um sucesso estrondoso. Só com sua estreia nos cinemas, a adaptação do famoso game de construção faturou mais de 313 milhões de dólares em bilheteria. Metade disso foi só nos EUA, tornando-o a maior abertura doméstica de um longa baseado em um videogame. Nas bilheterias mundiais, está abaixo apenas da animação Super Mario Bros.: O Filme, o que torna Minecraft a maior estreia de uma adaptação live-action.

Isso mostra o quanto as pessoas estão cada vez mais interessadas em ver as histórias saírem dos joysticks para as telonas. Basta ver o inacreditável desempenho do próprio Super Mario, que bateu a barreira do bilhão em 2023, perdendo apenas para a Barbie no ranking mundial. No ano passado, com quase meio bilhão de dólares, Sonic 3 não só ultrapassou Detetive Pikachu, como também virou a maior bilheteria da carreira do ator Jim Carrey.

Cena de Um Filme Minecraft

Ou seja, adaptar videogame para as telonas virou sinônimo de sucesso, mais nitidamente da década de 2010 para cá, com vários lançamentos ganhando carta branca automática para continuações. No final deste ano, por exemplo, ainda teremos Five Nights At Freddy 2 (ou FNAF 2), continuação do sucesso de 2023.

Porém, toda essa empolgação do público com as adaptações de games era impensável fora do circuito gamemaníaco, há algumas décadas. Isso porque, do Super Mario da década de 1990 até Minecraft, os videogames nas telonas penaram nas mãos de Hollywood, da crítica e do público. Uma surra tripla que, felizmente, foi vencida com o tempo.

O castelo nem existe

Tudo começou da forma mais capenga possível. Super Mario Bros. (1993) teve a árdua tarefa de trazer o popular mascote da Nintendo para o cinema e de carregar o manto de primeira adaptação de games da história. Mesmo com nomes de peso no elenco, como Bob Hoskins (Uma Cilada para Roger Rabbit) e até Dennis Hopper (indicado ao Oscar por Sem Destino), o resultado foi um fiasco que sequer encostou no valor do orçamento de 40 milhões de dólares.

O filme também não ajudou. Ninguém da equipe de produção deve ter jogado algum Mario na vida, porque o que vemos na tela é oposto do jogo e das animações. Aqui, Mario é covarde e Luigi, corajoso; a Princesa Daisy é par romântico de Luigi, não de Mario; o vilão Koopa não é um monstro, mas um ditador de cabelo arrepiado; e o castelo nem existe. É uma das piores adaptações de games para o cinema, mas que, convenhamos, abriu as portas para outras tentativas futuras.

Super Mario Bros. (1993): estreia dos games na telona

Mesmo assim, a coisa piorou. Double Dragon (1994), que adapta o querido subgênero “briga de rua”, traz os irmãos Jimmy (Mark Dacascos) e Billy (Scott Wolf) enfrentando uma gangue liderada por Shuko (Robert Patrick). Todos pagando as contas com uma trama boba, lutas ridículas e efeitos mambembes. Porem, nada supera o que viria a seguir.

Fatality

Street Fighter: A Última Batalha (1994) é uma baderna cinematográfica que, além de ser horroroso, só pega emprestado o nome dos personagens e inventa o resto. O japonês Honda virou havaiano, o boxeador Balrog é cameraman da Chun-Li, Dhalsim é um cientista e até Ryu e Ken – protagonistas do jogo – foram rebaixados a dois vigaristas pé-de-chinelo. O protagonista é Guile, interpretado por Jean Claude Van-Damme. Ah, e a Shadaloo não é mais uma organização criminosa, mas uma ilha – habitada por cidadãos “shadalenses”. Achou vergonhoso? Espere para ver os golpes célebres, como Hadouken, Shoryuken e o torpedo do vilão M. Bison. Um triste golpe no fim da carreira do grande Raul Julia. Nem a ótima animação Street Fighter II: O Filme (1994) acalmou os ânimos.

No ano seguinte, a boa notícia. O diretor Paul W.S. Anderson fez Mortal Kombat (1995) e mostrou como se adapta um game, trazendo algo inédito: fidelidade. O enredo é o mesmo que os gamers já conhecem e os atores caracterizados se parecem com suas versões eletrônicas. Aliás, Christopher Lambert se diverte como Raiden, o deus-do-trovão, e Cary-Hiroyuki Tagawa está ameaçador como o Shang-Tsung. Nem os fan services atrapalham as lutas bem legais (“Fatality!”), fazendo de Mortal Kombat um bom programa mesmo para quem nunca jogou na vida. E duvido você ter esquecido a dançante música-tema.

Mortal Kombat (1995): jogabilidade boa

Aí a continuação estragou tudo. Mortal Kombat: A Aniquilação (1997) faz o oposto do primeiro, com efeitos bem toscos e atuações tão boas quanto da novela Os Mutantes. Fechando a “gloriosa” década de 1990, Wing Commander (1999) entregou uma produção pobre que trata o espaço sideral de maneira bem desrespeitosa. Haja suspensão da descrença para aguentar tiros de metralhadoras nas estrelas e uma pista de pouso para a nave não cair (no espaço!). É isso.

Action-girl-star

Pokemon: O Filme (1999) fez sucesso, mas as adaptações live-action ainda sofriam com a resistência do público. Tomb Raider (2001) mudou isso. A aventura estrelada por Angelina Jolie capturou o espírito do jogo da Eidos Interactive e, de quebra, arrastou os non-players ao cinema, faturando mais de 200 milhões de dólares. Pena que o bom Final Fantasy (2001) não tenha feito a mesma coisa, pois seu enredo futurista não trouxe a pegada mágica da obra da Squaresoft e fracassou nas bilheterias. Até que Resident Evil: O Hóspede Maldito (2002) consolidou a virada de chave de Tomb Raider, iniciando uma saga de sucesso com vida própria, tornando Milla Jovovich uma action-girl-star.

A empolgação fez os estúdios mirarem nos games de terror. O problema foi deixarem o cineasta Uwe Boll encabeçar essa leva maldita. House of the Dead (2003), Alone in the Dark (2005) e BloodRayne (2005) são porcarias que fazem a gente se perguntar como o diretor alemão conseguiu permissão para ser cineasta. Fora isso, Doom: A Porta do Inferno (2005) tentou emular a perspectiva dos games e deu uma indicação do Framboesa de Ouro ao astro Dwayne Johnson. Nesse meio tempo, Angelina desceu e Milla subiu, pois Tomb Raider: A Origem da Vida (2003) não repetiu o sucesso anterior, enquanto Resident Evil: Apocalypse (2004) superou o antecessor.

Terror em Silent Hill (2006): marco nas adaptações

O Japão caiu dentro com dois filmes que primaram pela fidelidade: Final Fantasy VII (2005) e Forbidden Siren (2006). Porem, foi o americano Terror em Silent Hill (2006) que virou um marco no subgênero. Sua atmosfera sombria e os cenários hiper-fieis atrairam tanto quem jogou a obra do Playtation tanto quem só queria ir ao cinema apreciar um bom terror, com uma boa história. Sem dúvida, um dos melhores filmes baseados em game já feitos.

Tentativa pífia

Por outro lado, Hollywood continuou sem dó dos games de luta. DOA: Dead or Alive (2006) é uma adaptação chinfrim de um jogo de pancadaria do Sega Saturno, mas que tinha como grande atrativo uma cena de jogo de volei entre mulheres, uma referência à versão esportiva (e sexualmente apelativa) Dead or Alive Xtreme Beach Volleybal. A avacalhação era tão grande que a capa de DOA mais parece de um filme erótico que de um filme convencional. Nesse quesito apelativo, o japonês Onechambara (2008) veio para competir com Dead or Alive, mas quase ninguem viu.

Capas de Dead or Alive (2006): é de luta?

Como se não bastasse, o ano de 2009 nos deu um combo de lascar, com Street Fighter: A Lenda de Chun Li, tentativa pífia de apagar o filme de 1994; The King of Fighter, com um protagonista tão inexpressivo que ele parecia ter paralisia facial; e Tekken, que traz o trocadilho mais estúpido já visto em um slogan (“Sobreviver não é um jogo”).

Enquanto isso, os games de ação ganharam adaptações menores que agradaram mais o público de fora dos games, como Hitman, Max Payne e Far Cry: Fugindo do inferno. Já os japoneses tentaram agradar os jogadores mesmo, com o CGI de Resident Evil: Degeneração e o pouco conhecido Like a Dragon. E Uwe Boll (misericórdia…) atacou novamente com dois filmes que só agradaram a ele mesmo: Salve-se Quem Puder (baseado no game Postal) e Em Nome do Rei (baseado em Dungeon Siege). Tudo isso entre 2007 e 2008.

Mais sucessos que fracassos

Com a chegada da década de 2010, os games no cinema entraram em uma nova fase, com os estúdios dispostos a injetar mais grana nas adaptações para colocá-las no patamar dos grandes blockbusters. Tanto que O Príncipe da Pérsia (2010) ganhou dois selos potentes: da Disney e do produtor Jerry Bruckheimmer (Armageddon, série Piratas do Caribe). Com 200 milhões de dólares de orçamento, a ótima aventura protagonizada por Jake Gyllenhal faturou 336 milhões. Um recorde, mas pouco suficiente para o gasto enorme. Felizmente, a obra se deu bem nas vendas caseiras.

A partir daí, o subgênero teve mais sucessos que fracassos. Contando nos dedos, somente Bloodrayne 3 (2010), Silent Hill: A Revelação (2012), Ratched & Clank (2016) e Assassin’s Creed: O Filme (2016) floparam (este último teve até sua sequência cancelada pela Fox). O resto foi só festa. Paul W.S. Anderson fechou a série Resident Evil com mais três filmes, todos rentáveis e divertidos. Hitman: Agente 47 (2015) rendeu mais que o dobro de seu orçamento, enquanto Need For Speed (2014) rendeu mais que o triplo.

O Príncipe da Pérsia (2010) e Warcraft (2016): nova fase

Até que o inesperado aconteceu: Warcraft: O Primeiro Encontro de Dois Mundos (2016) quebrou o recorde de O Príncipe da Pérsia e se tornou a primeira adaptação de games a ultrapassar 400 milhões de bilheteria. No mesmo período, Angry Birds: O Filme (2016) já havia iniciado o caminho aos seus 350 milhões. Os videogames, enfim, alcançaram o grande público nos cinemas.

Monstros destruidores

O fim da década de 2010 nos trouxe uma nova Lara Croft em Tomb Raider (2018), com outra vencedora do Oscar: Alicia Vikander (A Garota Dinamarquesa). A trama é fiel ao jogo de Playstation 3 e X-Box 360 (que já era cinematográfico) e não deixa o público geral boiando. Um sucesso superado no mês seguinte por Rampage: Destruição Total (2018), filme-catástrofe bacana com The Rock, que muita gente nem deve saber de que veio de um game. E olha que o horrível Slender Man: Pesadelo Sem Rosto (2018) já era conhecido na Internet, mas rendeu somente 50 milhões de dólares. Por sorte, tinha custado só 10 milhões e ficou tudo certo.

Apesar dos monstros destruidores de prédios terem encostado, foi um Pokemon que quebrou o recorde de Warcraft. Isso porque o sensacional Detetive Pikachu (2019) alcançou 450 milhões de dólares, consolidando de vez o subgênero no mundo.

Detetive Pikachu (2019) e Sonic (2020): mascotes lucrativos
Detetive Pikachu (2019) e Sonic: O Filme (2020): mascotes lucrativos

Virando para a década de 2020, Hollywood redescobriu outro ícone dos games há muito esquecido: o Sonic. Contudo, quando surgiu o trailer do filme, o público caiu na risada e não perdoou o design feio do mascote da Sega. E – vejam só – o povo foi ouvido e a Paramount suspendeu o projeto para redesenhar o personagem. Deu certo: Sonic: O Filme (2020) conquistou uma nova legião de fãs e ainda resgatou a carreira de Jim Carrey.

Um bilhão

Pikachu e Sonic abriram o momento mais promissor da história dos games no cinema: o atual. Dos lançamentos seguintes, ainda houve três fracassos: Monster Hunter (2020), Resident Evil: Bem Vindo a Racoon City (2010) e o novo Mortal Kombat (2021). Os outros fizeram os estúdios sorrirem de orelha-a-orelha. Mesmo com a renda modesta de Gran Turismo (2023), Uncharted (2022) já tinha feito o que os Tomb Raider da vida não conseguiram, com mais de 400 milhões para os cofres da Sony. Sonic 2 (2022) e Sonic 3 (2024) fizeram o mesmo pela Paramount e se tornaram uma trilogia que só melhora de um filme a outro (o terceiro filme é o máximo).

E quem mais sorriu – e está sorrindo até hoje – é a Universal, com dois estrondos em 2023: o terror-teen Five Nights at Freddy (ou, simplesmente, FNAF), que ganhou carta branca automática para uma continuação; e a fidelíssima animação Super Mario Bros: O Filme, primeira adaptação de games a bater UM BILHÃO de dólares em bilheteria e um dos 20 maiores filmes de todos os tempos (falei sobre ela aqui).

Super Mario Bros: O Filme (2023): primeiro bilhão dos games no cinema

A essa altura, Um Filme Minecraft já bateu metade disso, montando alguns blocos acima da Marvel e seu Capitão América: Admirável Mundo Novo. A sequência, claro, já está confirmada.

Saíram da bolha

Podemos dizer que chegamos à Era de Ouro das adaptações em games. Isso porque não são só os filmes, mas as séries estão levando o subgênero muito à sério. As produções televisivas e de streaming estão tão caprichadas e criativas quanto adaptações de livros, geralmente mais prestigiadas. No início dos tempos, tivemos os efeitos precários de Maniac Mansion (1990-1993) e Mortal Kombat: A Conquista (1998-1999). Nos últimos anos, The Witcher conquistou os usuários da Netflix, alem de ganharmos – em outras plataformas – o requintado Gangs of London, o divertido Twisted Metal e duas grandes séries pós-apocalípticas: Fallout, da Amazon Prime; e The Last of Us, da HBO. Esta última, inclusive, está na segunda temporada.

The Last of Us: level up nas adaptações

Pela liberdade imaginativa que permitem, as animações tem melhor chance de satisfazer os gamers, como foram os casos de Castlevania e Arcane, além do próprio Pokemon, na década de 1990. Já os live-action, que são os maiores alvos da exigência dos fãs, nem sempre caem nas graças de todo mundo, vide Halo e o Resident Evil da Netflix. Agora mesmo, se você pesquisar nas redes sociais, vai se deparar com as reclamações mais inúteis sobre a fidelidade de The Last os Us, sendo a maioria direcionada à atriz Bella Ramsay, só pela falta de semelhança física com a personagem Ellie original – mas isso é assunto para outro dia. O que importa é que a série protagonizada por Ramsay e Pedro Pascal tem um nível de produção e qualidade invejáveis. Aliás, a primeira temporada foi premiada com oito Emmys, o Oscar da TV e streaming. Muito bom, não é?

Último chefe

O Oscar ainda não fez sua parte, mas o cinema está melhorando – ainda que em proporção menor que nas séries. De toda forma, as histórias dos games saíram da bolha gamemaníaca e, enfim, foram abraçadas pelo resto da humanidade. Mesmo as obras mais jururus contribuíram para essa trajetória tão problemática quanto fascinante, na missão de trazer um divertimento tão particular para outro nível. É irônico ver como foi com o mesmo personagem (o Mario) que tudo começou tão capenga e, anos depois, alcançou o apogeu dessas adaptações.

Reclamações sempre existirão, com um ou outro querendo repetir a experiência que já tiveram quando estavam com o controle na mão. Mas, agora, vamos inverter o jogo. Até porque videogame e cinema são mídias diferentes e nem tudo que deu certo em uma funciona na outra. O mais importante é que o cinema consiga capturar o espírito do game original, sem deixar de lembrar que o novo produto deve ser visto, não jogado. Então, deixemos que os artistas controlem os personagens, reescrevam suas histórias e que continuem passando de fases, já que, desta vez, o próprio público virou o último chefe. Afinal, nós é que decidiremos se o filme zerou o jogo ou se foi Game Over.

Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.

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