
Cada dia das últimas semanas foi uma dor de cabeça diferente para a dona Netflix. Isso porque Karla Sofia Gascón, a protagonista de Emilia Perez, jogou todas as suas chances no ralo para Melhor Atriz. Pior: está levando o filme inteiro junto.
O filme de Jacques Audiard já estava causando polêmicas devido à rejeição dos mexicanos e das pessoas transgênero, que se viram mal representadas na obra. Depois, o próprio diretor citou o idioma espanhol como “uma língua de países modestos, em desenvolvimento, dos pobres e migrantes”, em uma entrevista na França.
Agora, a atriz principal se revelou uma pessoa extremamente preconceituosa em várias postagens no Twitter – atual X – publicadas há alguns anos. Esse passado – não tão distante – já afetou a campanha de Emilia Perez, a ponto da Netflix reformular a estratégia para conseguir salvar seu filme.
E, sim, isso aumenta as chances de Ainda Estou Aqui de dar o primeiro Oscar de Melhor Filme Internacional ao Brasil.
Ira tupiniquim
O primeiro grande tropeço na campanha de Emilia Perez foi uma entrevista de Karla Sofia Gascon para a Folha de São Paulo, em que sugeriu que estava sendo atacada por pessoas envolvidas do ambiente de Fernanda Torres, sem prova alguma. Nesta viagem ao Brasil para a divulgação do filme (olha a audácia!), a atriz ainda completou: “Isso fala mais deles e de seu filme do que o meu”.
O afronte despertou a ira tupiniquim e o povo caiu matando nas redes sociais. Pior: isso aconteceu pouco depois da própria Fernanda Torres ter postado no Instagram um vídeo defendendo a concorrente, pedindo aos brasileiros para não espalharem ódio. E a intérprete de Eunice Paiva finaliza: “Karla Sofia Gascón é uma mulher generosa, talentosa e merece todo nosso carinho”.
Infelizmente, os elogios envelheceram como leite fora da geladeira. E não foi só pela ingratidão de Gascón.
Festival afro-coreano
Na semana passada, a jornalista Sarah Hagi descobriu tweets antigos da atriz. Nas postagens, ela ofende de tudo um pouco: negros, indianos, islâmicos, imigrantes, homossexuais, feministas, a vacina contra Covid-19, a atriz Selena Gomez, a cantora Adele, a Miley Cyrus,… Soma-se isso às pessoas que já se sentiram ofendidas com a própria existência do filme – mexicanos e transgêneros – e temos o combo mais inacreditável de pessoas furiosas com qualquer indicado ao Oscar em todos os tempos.
E eu nem citei a ofensa que deve ter enterrado de vez as chances de Gascón para Melhor Atriz. Em 2021, a atriz ofendeu a própria Academia, quando Nomadland se consagrou como grande campeão.
Não tendo o que fazer, publicou o seguinte tweet:
“Cada vez mais, o Oscar está parecendo uma cerimônia para filmes independentes e de protesto, eu não sabia se estava assistindo um festival afro-coreano, uma manifestação do Vidas Negras Importam ou o 8M. Fora isso, uma gala feia, feia. Esqueceram de dar um Oscar para o curta-metragem do meu primo, que é manco”.
Oscar de Melhor Atriz? Pode esquecer.
Chorando para a câmera
Honestamente, Gascón já não tinha muita chance na categoria principal, ainda mais concorrendo com Fernanda Torres, que está crescendo cada vez mais; e Demi Moore, cuja trajetória de ressurgimento está parecida com a de Brendan Fraser, dois anos atrás (a Academia adora isso).
Só que, agora, nem adianta mais fazer campanha. Mesmo porque tudo piora a cada vez que ela abre a boca. Ao se defender das acusação de racismo, chegou a dizer que, se ela fosse racista, ela não estaria trabalhando com Zoe Saldaña (risos). E, há dois dias, ela deu uma entrevista à CNN, sem o consentimento da Netflix, para se defender e se livrar do cancelamento, chorando para a câmera.
Resultado: Netflix larga a mão de Gascón e a retira do marketing do filme, definitivamente. Até mesmo a lembrança dela como Melhor Atriz foi eliminada do novo cartaz da campanha do filme.
Dificuldade em votar
O pior é que a crise de Emilia Perez não ficou restrita às categorias principais. Segundo Scott Feinberg, da revista Hollywood Reporter, alguns votantes já declararam que terão dificuldade em votar na obra em QUALQUER CATEGORIA. Portanto, não se espante se a compositora Diane Warren finalmente ganhar o Oscar (após 16 indicações!), pela canção “The Journey”, do filme Batalhão 6888. Por enquanto, a favorita na categoria Melhor Canção continua sendo “El Mal”, de Emilia Perez, cantada por Zoe Saldaña.
Falando nela, até a favorita em Melhor Atriz Coadjuvante não sabe se ainda tem chance de levar seu Oscar. Ao ser premiada em Londres, Saldaña desabafou que “não esperava esse prêmio, ainda mais agora”. Fora o baque que ela teve quando o curta Dovecote, protagonizado/produzido por ela e dirigido pelo marido Marco Perego, não foi indicado a Melhor Curta-Metragem, depois de tantas divulgações e entrevistas. Impressionante como uma atriz conseguiu arruinar toda uma campanha do filme mais indicado do ano. É a queda mais meteórica de um filme indicado ao Oscar.
“Pequeno” descuido
Na verdade, nem podemos julgar a Netflix por escolher Gascón para a linha de frente do marketing do filme, já que não parecia um risco. Muito pelo contrário: por ser a primeira mulher trans a ser indicada a Melhor Atriz, esperava-se que ela aproveitasse sua indicação histórica para o que poderia ser uma das mais bonitas campanhas de atuação da história. Afinal, estar entre as melhores atrizes do ano é a corroboração da Academia para a visibilidade trans e o avanço na superação de privilégios heteronormativos – o que tornaria a presença de Emilia Perez ainda mais especial para a cerimônia.
O erro da Netflix foi não ter checado o histórico da atriz. Em tempos em que a internet já revela o comportamento virtual de qualquer pessoa (inclusive celebridades), não se sabe por que a empresa cometeu um erro tão amador. Meu palpite é que a confiança em Karla Sofia Gascón para ser a porta-voz do filme foi tão grande que, simplesmente, ninguém teve a ideia de que uma pessoa como ela poderia ser tão hipócrita. Ninguém para dizer: “Mulher, apaga isso!”. Enfim, passou batido. Mas foi esse “pequeno” descuido que pode ter custado o prêmio de Melhor Filme Internacional à França.
E é aí que entra o Brasil na jogada. Enquanto a popularidade de Emilia Pérez vem caindo a cada dia, a de Ainda Estou Aqui só cresce. Vou mais longe: o Brasil tomou a dianteira e se tornou o favorito na categoria Melhor Filme Internacional. No Gold Derby, maior site americano de apostas em premiações, o filme brasileiro já ultrapassou o francês nas apostas à categoria.
Curtindo horrores
Alem disso, o engajamento dos brasileiros nas redes sociais para a torcida de Fernanda Torres também é algo sem precedentes. Basta olhar nas fotos da página oficial da Academia no Instagram, onde a instituição postou fotos personalizadas de vários artistas no Governor Awards. A de Fernanda é infinitamente campeã em reações, com quase 3 milhões de curtidas, mais de 800 mil comentários e mais de 350 mil compartilhamentos. Para se ter uma ideia da dimensão, a segunda colocada em engajamento, a estrela Kate Winslet, tem 104 mil likes, pouco mais de 3 mil comentários e compartilhamentos, idem.
Depois do anúncio dos indicados ao Oscar, a curiosidade de ver que filme brasileiro é esse que está na lista de Melhor Filme pegou os americanos. Concomitantemente, os brasileiros entraram em massa nas redes sociais para exaltar Ainda Estou Aqui e tirar sarro de Emilia Perez, processo em andamento desde o Globo de Ouro, antes do fato de abominar o filme francês virar moda. Claro que os acadêmicos e a imprensa internacional estão vendo tudo, os americanos estão indo aos cinemas ver Ainda Estou Aqui e os elogios não param de aparecer na Internet. Em outras palavras: com o longa de Walter Salles, o Brasil está engajando o próprio Oscar nas redes sociais. A Academia, claro, deve estar curtindo horrores e agradecendo a todos nós.
Crescendo no Oscar
Assim, as chances do Brasil de levar o Oscar de Melhor Filme Internacional estão maiores que as da França. Mesmo porque, felizmente, as equipes de Salles e da Sony Classics não caíram na armadilha da disputa virtual por atenção e eu já dou esse prêmio como garantido. Para Melhor Atriz, uma concorrente a menos para Fernanda Torres, que tem como grande rival outra que está comendo quieta: Demi Moore, por A Substância. O mais difícil é para Melhor Filme, mas a bagunça já está tão grande que a edição deste ano continua sem favoritos.
O que pode iluminar alguma coisa é o prêmio do Sindicato de Produtores, o PGA. No dia 8 de fevereiro, próximo sábado, vamos descobrir quem vencerá o maior termômetro da categoria principal do Oscar. Como a votação ao prêmio encerrou antes da crise, o resultado só deverá influenciar no Oscar se o vencedor não for Emilia Perez. Lembrando que Ainda Estou Aqui não está no PGA, mas está crescendo no Oscar.
Só sabemos de uma coisa: a Netflix já perdeu o ano. E, a partir de agora, espera-se que todos os estúdios tenham aprendido a lição e que não subestimem mais o poder das redes sociais. Nada mais será como antes.
Ah, esqueci de falar: Emilia Perez estreia no Brasil amanhã, 06 de fevereiro de 2025. Vai assistir?
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.