Se você entrar nas redes sociais agora mesmo, possivelmente vai esbarrar em um meme da quarta temporada da série “Stranger Things”. Seja mostrando a devoção ao personagem Eddie, seja perguntando qual música faria o espectador escapar do vilão Vecna, em alusão a um dos grandes momentos da série. Na verdade, o impacto da temporada transcende a diversão individual para promover um renascimento oitentista no mundo real. Que o diga a cantora Kate Bush, que viu sua música Running Up That Hill alcançar o topo das paradas, 37 anos após seu lançamento original. Não é novidade que a criação dos irmãos Duffer reverencia a década de 1980 desde o seu começo, em 2016. Porem, ela nunca se aproximou tanto do público quanto neste ano.
O que muita gente deve ter percebido é que essa adoração a uma série não é um fenômeno isolado. Embora “Stranger Things” seja uma febre por si só, muitas outras séries também carregam um carinho similar do público. Por outro lado, não vejo esse mesmo caso de amor com o cinema. E, apesar da palavra CINEMA, não me refiro somente às sessões na tela grande, mas também aos lançamentos caseiros. E olha que a Netflix, maior plataforma de streaming da atualidade, faz chover filmes originais. Mesmo assim, a Sétima Arte parece ter perdido mais e mais espaço nos nossos corações para a TV. Uma virada de jogo impensável no século passado, mas que se tornou real nos dias atuais.
Não tenho dúvidas: tudo aconteceu porque, definitivamente, a qualidade das séries superou a dos filmes. E muito.
Novo padrão
A caminhada para essa superação foi bem lenta. Claro que a televisão já tinha um público cativo, da década de 1960 (com a série “Alem da Imaginação”) à de 1990 (com o sci-fi “Arquivo X” e a comédia “Friends”). Contudo, havia uma separação clara com o cinema, sem que um mundo interferisse no outro. Afinal, eram formatos e propostas diferentes. Enquanto o cinema tinha grandes ambições audiovisuais, a TV se contentava em servir como um passatempo para quem estava em casa. Mesmo que as séries também fossem fontes de histórias boas ou divertidas, era cada um no seu quadrado, sem margem para competições entre si. Tudo começou a mudar quando a TV a cabo, presente na vida americana desde os anos 1970, começou a produzir conteúdo original nas décadas seguintes.
Até que, em 1999, o canal HBO lançou a série “Família Soprano”. Foi uma divisão de águas. Pela primeira vez, um programa de televisão era bem feito e ambicioso o suficiente para parecer coisa de cinema. Com essa elevação de patamar e um novo padrão de qualidade a ser seguido, as séries posteriores também almejavam novos horizontes. As histórias se tornaram mais interessantes, o elenco dava mais sangue pela atuação e a parte técnica (fotografia, edição, sonoplastia,…) ficou mais caprichada. Uma evolução tão grande que atraiu atores de Hollywood, como Kiefer Sutherland (na série “24 Horas”), Al Pacino e Meryl Streep (ambos na minissérie “Angels in America”). Enfim, foi o início de uma nova era na televisão.
Subtextos interessantes
Daí veio um fenômeno atrás do outro. Em 2004, “Lost” fez o mundo parar para ver um grupo de sobreviventes de um acidente aéreo em uma ilha perdida. No ano seguinte, estreou “Sobrenatural”, transformando os fãs de contos de terror em fãs dos protagonistas – os irmãos Winchester. “Dexter” (2006) fez o público torcer para um assassino. E, nos dois anos seguintes, as primeiras temporadas de duas obras-primas do audiovisual que subiriam a TV de patamar outra vez: “Mad Men” (2007) e “Breaking Bad” (2008), ambas com roteiros e atuações primorosos, exibidas pela rede AMC.
Falando nela, 2010 foi o ano do nascimento de “The Walking Dead”, que nos deu o apocalipse zumbi mais angustiante, com efeitos de maquiagem grotescos (no bom sentido) em um grau jamais visto nem no cinema. O melhor é que, mais que um programa de terror gore, a série tinha subtextos interessantes e temas como família, lealdade, humanidade e, principalmente, sobrevivência em um mundo insuportavelmente hostil – às vezes, sem partir de um morto-vivo.
De todo modo, a nova revolução na produção de séries ainda estaria por vir. Sim, o inverno estava chegando.
Emmy > Oscar
“Game of Thrones” (2011) provou que a televisão era um campo fértil para superproduções, com o investimento de um milhão de dólares por episódio. Aliás, esses programas alcançaram um nível de excelência inacreditável, não apenas em efeitos visuais, mas também em criatividade. A década de 2010 foi uma fonte de ideias brilhantes, com execuções em tela que batiam de frente com obras vencedoras do Oscar. Inclusive, falando em premiações, o Emmy 2014 foi um dos mais difíceis de torcida, com tanta obra-prima concorrendo. Como as estreias de “Fargo” e “True Detective”, a quarta (e surpreendente) temporada de “Game of Thrones”, a sexta de “Mad Men” e o explosivo encerramento de “Breaking Bad”, com o episódio Ozymandias alcançando o primeiro lugar na lista dos melhores na história das séries, pelo IMDB.
A esta altura, a competição entre TV e cinema já estava se refletindo nas premiações. Desde então, acompanhar o Emmy está bem melhor que o Oscar. Ainda mais que, em 2016, a Netflix lançou suas maiores armas: “The Crown”, produção mais cara da Netflix, e “Stranger Things”, que virou um fenômeno. E, paralelamente, as estreias simplesmente perfeitas de “Westworld”, da HBO, e “The Handmaid’s Tale”, da recém-chegada Hulu. Até cineastas e produtores hollywoodianos entraram na festa, como David Fincher (diretor de “Seven” e “Clube da Luta”), que produziu a série “House of Cards” (2013) e emprestou sua visão criminal única a “Mindhunter” (2017).
Exceção das exceções
Enquanto isso, os filmes vão indo, obrigado. Entretanto, a migração de artistas de cinema para a TV (e, agora, ao streaming) parece ter migrado tambem a preocupação em contar uma boa história. Para quem quer se apaixonar por uma trama e por personagens marcantes, assistir a uma série se tornou bem mais delicioso que ver filmes. Especialmente com a crise criativa de 2018, talvez a pior safra dos últimos anos (isso antes da pandemia do Covid-19). Já o ano de 2019 foi espetacular, entregando trabalhos irretocáveis como “Parasita” e “Era uma Vez em Hollywood”, um Eddie Murphy impecável e emocionante em “Meu Nome é Dolemite” e a emoção da experiência coletiva na sala escura com “Vingadores: Ultimato”.
Infelizmente, o tempo mostrou que aquele ano foi uma exceção das exceções. A verdade é que, por mais que tenhamos longas maravilhosos em cinema e streaming (“Judas e o Messias Negro”, “Ataque dos Cães”, “Soul”), o prazer de ver uns três filmes no mesmo dia vem sendo substituído por passar esse mesmo dia fazendo outra coisa: maratonando alguma temporada. Obviamente nem todas as séries merecem esse sucesso todo (nunca entendi porque “Bridgerton” é a serie mais vista da história da Netflix), mas creio que o número de filmes ruins é bem mais expressivo. Em outras palavras, é mais fácil encontrar um filme sem graça que uma série sem graça. Tanto que já faz três anos que “Parasita” é o melhor filme do ano, sem outro ao menos encostar.
Imperdíveis
Atualmente, “Stranger Things” é a serie mais popular do momento. Bem feita, imaginativa, instigante e cheio de referências dos anos 1980, o programa sempre está na boca do povo, ano após ano. Esta quarta temporada já prenuncia o fim próximo, já antecipando o gostinho amargo da saudade. Algo que já sinto por “Ozark”, que fechou como a MELHOR SÉRIE DA HISTÓRIA DA NETFLIX (sim, foi para chamar sua atenção mesmo e não deixar essa obra-prima escorrer pelas suas mãos). Ainda bem que teremos mais “Succession” e “Euphoria”, dois monumentos preciosos da HBO, bem como a comédia inspiradora “Ted Lasso” (Apple TV+).
E ainda faltam as minisséries, mas nem me aprofundarei nelas senão não termino hoje.
Portanto, o que me resta é recomendar estas atrações de temporada única, TODAS imperdíveis: “Chernobyl”, “Watchmen”, “The Act”, “Olhos que Condenam”, “Inacreditável”, “Mare of Easttown”, “I May Destroy You”, “The Underground Railroad”, “Dopesick”, “The Maid”, os três “American Crime Story”… Alem de outras séries grandes menos conhecidas, mas também imperdíveis, como “Estação Onze” e “Ruptura” (que me fez gritar um palavrão no fim da primeira temporada) . E é sobre isso: para quem gosta de boas histórias, a TV e o streaming superaram o cinema de vez. Mesmo que, às vezes, um “Emily em Paris” da vida tente desmentir isso.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.