No Dia da Consciência Negra, uma boa notícia: cresceu a quantidade de literatura infantil com protagonistas negros e escritos por autores não brancos no país.
Pequenas e grandes editoras, bem como selos independentes ofertam obras que ampliaram o protagonismo negro.
De acordo com a pesquisadora e blogueira Luciana Bento, isso se deve principalmente à inclusão do estudo das culturas afro-brasileiras no currículo escolar em 2003.
Identidade e possibilidades
Ketty Valêncio é proprietária da Africanidades, livraria especializada em autores negros. Conforme afirma, há não só um bom número de títulos disponíveis, como publicações que atraem cada vez mais o interesse.
“É um mundo muito rico, e tem muita gente procurando. Eu penso muito na minha infância. Minha introdução à literatura foi através dos itãs (contos tradicionais da cultura iorubá, numerosa entre os negros que vieram para o Brasil) dos orixás. Então, minha geração desconhecia literatura infantil com recorte étnico-racial.”
O contato com os itãs ajudaram a abrir as perspectivas de Ketty quando ainda era criança.
“Assim que comecei a ler as histórias sobre as orixás femininas, eu me reconheci nelas, mulheres pretas incríveis”, diz.
É justamente uma ampliação dessa oportunidade que ela enxerga nas infâncias negras no Brasil de hoje.
“A literatura infantil é o início de um acolhimento. Ali você trabalha diversas questões que vão ocorrer na vida adulta: autoestima, pertencimento, orgulho da sua história, de onde você vem, da sua ancestralidade.”
Histórias e tradições
Dessa forma, a professora e pesquisadora Evelin Oliveira se esforça para trabalhar histórias com esse recorte. Ela dá aulas para crianças em Carapicuíba, na Grande São Paulo.
“No meu planejamento anual, trabalho desde o primeiro dia a diversidade étnico-racial, com foco na construção dessa identidade. Porque são crianças de 4 a 5 anos e, neste momento, a diversidade precisa estar presente o ano inteiro e não somente em novembro”, afirma.
Além disso, Evelin leva jogos que ela mesma cria. Quebra-cabecas e jogos de memória com elementos tradicionais de culturas africanas, como por exemplo os adinkras (símbolos que remetem a conceitos e histórias).
De acordo com Evelin, o contato com essas referências ajuda as crianças a estabelecer a própria identidade.
“Principalmente as crianças negras, que não se enxergam enquanto negras. Se tem uma criança com pele mais escura, tem aquela pequena discriminação que precisa ser trabalhada em sala de aula”, ressalta.
O negro além do racismo
“O passado é uma forma de abrir a conversa com as questões do presente”, relata o historiador e escritor Allan da Rosa. “Pensar família, abrir o linguajar, viajar, mas com as unhas agarradas no tempo da molecada”, diz o autor, sobre os sentimentos durante o processo de construção do livro Zumbi Assombra Quem?, publicado em 2017.
O livro surgiu da conversa com uma colega que teve dificuldade em contar a trajetória do líder quilombola Zumbi dos Palmares a um grupo de jovens em um festival literário.
“Ela disse que a oficina tinha sido terrível, que ficou uma hora com a molecada, que falou de Zumbi. A molecada ficou com nojo, disse que zumbi era um cadáver que anda, que assombra. E ela não conseguia lidar com isso”, lembra.
A partir da provocação, Rosa resolveu trabalhar com fantasmas reais e imaginários que rodeiam crianças e adolescentes, mostrando como surgiu a ideia do livro.
“Na hora, eu brinquei e disse que Zumbi assombra mesmo os fazendeiros, os racistas”, disse o escritor, trazendo uma desconstrução do imaginário feito por filmes e jogos da cultura de massa.
Literatura para ser lida também por adultos
De acordo com o autor, o diálogo com o público jovem não torna o livro necessariamente infanto-juvenil.
Para Rosa, o projeto é uma publicação para ser lida de forma compartilhada por duas pessoas, ritual que repetiu todos os dias durante a infância do filho, hoje com 14 anos.
Dessa forma, obras que extrapolam o racismo são fundamentais, na opinião de Luciana Bento.
“Poder ver histórias em que as crianças negras têm famílias, sonhos, que não estão sofrendo, é muito importante”, diz a pesquisadora.
A possibilidade de ser retratada passa até por coisas simples, como no caso de sua filha mais velha, Aisha, que tem 9 anos e gosta de encontrar o próprio nome, de origem africana, nas histórias que lê.
“Meninas negras que são cientistas, que têm orgulho do seu cabelo, bem como que fazem várias coisas. São horizontes que se abrem pelas várias histórias.”
Fonte: Agência Brasil