Investigações apontam que PMs de Roraima formaram milícia e grupo de extermínio para proteger e roubar garimpeiros; comandante da PMRR é investigado

Coronel Miramilton Goiano, comandante da Polícia Militar de Roraima, é apontado nas investigações como “um militar de alta patente”, que seria o responsável por garantir o fornecimento de munições, armas e coletes, além de liberar policiais militares do serviço para trabalhos de segurança privada

Investigações apontam que PMs de Roraima formaram milícia e grupo de extermínio para proteger e roubar garimpeiros; comandante da PMRR é investigado
Comandante-geral da Polícia Militar de Roraima, Miramilton Goiano – Foto: Divulgação

Investigações das Polícias Civil e Federal apontam para uma organização criminosa formada por agentes da Polícia Militar de Roraima acusados de cometerem diversos crimes e atuarem como milícia privada no estado. A fim de intimidar invasores que extraem ilegalmente ouro e cassiterita na Terra Indígena Yanomami, o grupo pratica extorsão e roubo de toneladas de minérios para ficar com o lucro, além de vender proteção e armamentos aos garimpeiros.

A reportagem do O GLOBO apurou que mais de 40 policiais militares estariam envolvidos em diversos atos ilícitos. Entre os citados por testemunhas ouvidas pelas autoridades, está o atual Comandante-Geral da PM-RR, Miramilton Goiano de Souza. Em nota, o coronel Miramilton diz que as suspeitas “são inverídicas, sem fundamentos e não se sustentam quando colocadas diante dos mais de 34 anos na corporação”.

Documentos obtidos pelo GLOBO revelam que policiais da ativa se uniram a criminosos para realizarem roubos, extorsões, torturas e execuções de garimpeiros, além de assassinatos sob encomenda ligados à disputa por terras no estado. O esquema ainda oferece, de acordo com as investigações, serviços de segurança, escolta e munições a outros grupos de invasores que trabalham no garimpo, além de coletes à prova de bala. As autoridades também apuram a participação dos integrantes do bando no transporte de cocaína na fronteira com Venezuela e Colômbia por meio de aeronaves.

As investigações sobre a constituição de milícia por parte de policiais militares tiveram início em setembro de 2022, quando oficiais da ativa participaram de uma desastrada tentativa de roubo de um avião, usado em viagens para garimpos localizados na terra indígena e de propriedade de Efraim Hadan Abreu da Silva, o “Smith”, segundo aponta o inquérito de número 3027/2022, com 1.006 páginas, da Polícia Civil de Roraima, ao qual O GLOBO teve acesso.

Mascarados e vestidos de preto, seis homens armados renderam os pais de “Smith” e outras quatro pessoas, no sítio Novo Paraíso, zona rural de Boa Vista, onde funciona uma pista de pouso. Os criminosos se apresentaram às vítimas rendidas como PMs do Batalhão de Operações Especiais (BOPE).  Entre eles, estava Carlos Nascimento de Melo, descrito no inquérito como um dos responsáveis por recrutar policiais militares para atuar na segurança privada de garimpos ilegais. De acordo com “Smith”, Carlos Nascimento “teria sido apresentado e recomendado pelo coronel Miramilton”.

“Smith” diz em seu depoimento que ficou descontente com o “serviço precário” de Carlos Nascimento e tentou dispensá-lo. Uma dívida de R$ 80 mil entre os dois teria, no entanto, motivado a tentativa de roubo da aeronave. Na tentativa de decolar com o avião, uma das asas bateu na cabeça do soldado Ismael Palmeira da Silva, que tentava ajudar os ladrões iluminando a pista. O avião acabou por se chocar contra uma cajueiro. Ismael morreu no local e foi deixado para trás pelos comparsas. A morte do soldado deu início  às investigações da Polícia Civil.

“Smith” contou aos investigadores que buscou os serviços de Carlos Nascimento após ter uma pistola Glock 45, R$ 3 mil em espécie e um carregamento de 2,5 toneladas de cassiterita, acondicionado em sacos de 50 quilos, roubados da residência do seu pai por um grupo vestido com coletes e roupas táticas policiais. “Smith”, que se apresenta como piloto de avião do garimpo, afirma que o minério não não era seu , mas sim de Nilsinho de Jesus , ex-vereador de Ariquemes, em Rondônia. Ameaçado por Nilsinho, que não teria acreditado no roubo, recorreu aos serviços de segurança de Carlos Nascimento.

“Smith” e Nilsinho de Jesus não responderam aos contatos da reportagem.

Da cassiterita se extrai o estanho, também chamada de “ouro negro”, em alta no mercado por conta de sua utilidade para produzir ligas com alta resistência à ferrugem, além de compor acabamentos de veículos, vidros e tela de celulares.

Outros depoimentos de testemunhas ao longo das investigações envolvem “um militar de alta patente”, que seria o responsável por garantir o fornecimento de munições, armas e coletes, além de liberar policiais militares do serviço para trabalhos de segurança privada. O GLOBO apurou que o militar citado nos depoimentos e nas investigações em curso é o coronel Miramilton. As testemunhas entraram para o serviço de proteção.

A arma roubada na casa do pai de “Smith” foi localizada por Carlos Nascimento em posse do policial penal Alyson Santana, suspeito no caso e acusado de tentativa de homicídio, ameaça e violência doméstica. Segundo as investigações, Santana seria um dos nomes por trás de um grupo responsável por roubar garimpeiros. Por meio de nota, a PM disse ter aberto um procedimento interno para apurar a presença de um agente no bando. Uma outra sindicância foi iniciada para investigar o envolvimento de PMs na tentativa de roubo da aeronave.

O GLOBO apurou que Carlos Nascimento se encontra foragido na Colômbia. Procurado, seu advogado afirmou não existirem “elementos concretos” de envolvimento no episódio que culminou na morte do soldado Ismael. Ele também negou que Carlos Nascimento realize segurança privada de garimpos e se absteve de comentar sobre o paradeiro de seu cliente.

Procurado pelo GLOBO, o delegado da Polícia Civil, João Evangelista, atual responsável pela investigação, confirmou que há uma apuração nesse sentido (sobre a constituição de milícia por policiais militares e grupo de extermínio), mas que não poderia “dar mais informações” e “nem citar nomes”.

Coronel foi visitar investigado pela PF

Em outra investigação para desarticular uma facção criminosa com base na Penitenciária Agrícola de Monte Cristo, em Roraima, desta vez da Polícia Federal, o nome do coronel Miramilton volta a figurar em relações suspeitas. Um dos investigados pela PF é o agente penitenciário Renie Pugsley de Souza, filho do atual Comandante-Geral da PM.

Os dois teriam feito ao menos três visitas irregulares ao interno Jonathan Novaes de Almeida, preso na Operação K’daai Maqsin, de 2019, que investigou uma organização responsável por vender armas e munições ilegalmente para garimpos e facções criminosas. Segundo a PF, Renie de Souza, que usava uma balaclava nas visitas, não estava lotado na unidade prisional e seu pai não apresentava vínculos com a Secretaria de Estado da Justiça e da Cidadania.

Antes de ser preso, Jonathan Noaves de Almeida chegou a trabalhar no Centro de Formação de Vigilantes de Roraima, administrado pelo coronel Miramilton, de acordo com a PF.  No momento, a empresa de segurança consta como inativa na Receita Federal. A investigação da PF apontou que o filho do coronel mantinha uma elevada movimentação financeira em suas contas bancárias, apesar de receber na época R$ 4 mil de salário.

Citados nas investigações, Alyson Barbosa, Renie Pugsley de Souza, Emilângelo Medeiros, Arnaldo Cinsinho Melville, Lucas Araruna e André Galúcio não foram localizados. O espaço segue aberto para manifestações.

AO GLOBO, por meio de nota, o coronel Miramilton afirmou que tanto ele quanto o filho se identificaram na visita ao preso investigado e que a “fala foi autorizada pelo chefe de plantão e devidamente registrada, sem ilegalidade nenhuma”. Miramilton, que é pastor missionário, diz que “à época o cidadão frequentava mesma igreja com sua família”.

Confira a íntegra da nota do Comando da PM de Roraima:

“As alegações são inverídicas, sem fundamentos e não se sustentam quando colocadas diante dos mais de 34 anos na corporação, bem como sua vida pública e privada dedicadas à Segurança Pública do Estado de Roraima. Sempre prezou pela boa conduta social e respeito às leis, inclusive ao Estatuto e ao Código de Ética da Polícia Militar, que no Art. 21 diz que “Ao militar da ativa é vedado exercer a atividade de segurança particular e atividade comercial ou industrial (…)”. Desta forma, como representante máximo da Corporação, é ilógica que o Comandante possa incentivar que a tropa descumpra as normas internas tão caras para a hierarquia e a disciplina, basilares da existência da Polícia Militar de Roraima. Me coloco à disposição para posterior esclarecimento.”

Serviços de escolta para o garimpo

Um dos garimpos que recebe serviços de segurança prestados por PMs fica localizado na região de Pupunha, dentro da terra indígena, segundo um relatório de inteligência obtido pelo GLOBO. O empresário Lidivan Santos dos Reis, de 39 anos, morador de Boa Vista, é apontado como dono do garimpo e muito próximo a policiais militares. Ele chegou a ser preso duas vezes por porte ilegal de armas, mas foi solto por decisão judicial. A primeira prisão se deu no dia primeiro de fevereiro na Operação Hades, da Polícia Civil de Alagoas, que investiga um esquema de tráfico de drogas, organização criminosa e lavagem de dinheiro. Na ocasião, foram encontradas em sua casa vários fuzis e escopeta de grosso calibre, além de veículos, relógios e joias, todos apreendidos.

O empresário também teria ligações com o Primeiro Comando da Capital (PCC), segundo as investigações da polícia. Na pista de pouso do garimpo, de acordo com o relatório de inteligência, ao menos uma vez por semana, um helicóptero pousa com um carregamento de drogas. Ainda de acordo com as investigações, o grupo de Lidivan é abastecido com armas e munições de calibre pesado pelos próprios policiais militares.

Lidivan chegou a ser preso novamente no último dia 19 de abril por porte ilegal de armas de fogo no município do Cantá, norte de Roraima. Com ele foram encontrados duas pistolas e um revólver, além de diversas munições. O carro em que estava Lidivan, uma picape S10, era pilotada pelo cabo Jan Elber Dantas Ferreira, hoje lotado no comando da PM no setor de Recursos Humanos, e apontado como amigo íntimo do empresário. A polícia investiga a atuação de Jan Elber no transporte de armas que abastece o garimpo.

Advogados de Lidivan Reis negam o envolvimento do cliente com o tráfico de drogas e afirmam que sua prisão temporária, que não chegou a ser renovada, foi um “equívoco”. Além disso, desconhecem as alegações de envolvimento no garimpo ilegal e no uso de PMs para segurança privada. Procurado, Jan Elber disse ser amigo de Lidivan, mas negou envolvimento com qualquer tipo de crime e alegou nunca ter sido alvo de operação. Em nota, a PM disse ter aberto uma sindicância interna para apurar a conduta do agente investigada na Operação Hades.

Entre outros policiais citados no inquérito estão o soldado Samuel Ramos Gonçalves e o sub-tenente Emilângelo Medeiros, vulgo Mica. Procurado, o advogado de Samuel Gonçalves negou envolvimento do cliente na tentativa de roubo da aeronave e afirmou que ele se encontrava no desfile de 7 de setembro da PM quando o episódio ocorreu. Citado como envolvido em pistolagem, Emilângelo Medeiros não foi localizado.

Em outra frente de investigação, que também apura a atuação de milícia e grupo de extermínio, três policiais militares foram presos na Operação Janus, deflagrada no último dia 17 de abril. São eles: o sargento Arnaldo Cinsinho Melville e os soldados Lucas Araruna e André Galúcio, acusados de simular confrontos para cometerem assassinatos por encomenda.

Segurança do governador está implicado

O envolvimento de PMs em crimes dos mais diversos em Roraima ganhou um novo capítulo na semana passada. O capitão Helton John Silva de Souza foi identificado como uma das pessoas presentes no duplo homicídio de um casal de agricultores envolvidos em uma disputa por terras. Uma das vítimas chegou a gravar o momento em que foi abordada por homens que tentavam se apossar de suas propriedades. Na gravação à qual O GLOBO teve acesso, é possível, de acordo com as investigações, ouvir a voz do capitão Helton antes dos disparos matarem o casal. Helton John, no dia do crime, ainda era o coordenador da segurança do governador Antonio Denarium (PP). Ele foi afastado do cargo seis dias após os assassinatos.

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Capitão Helton Jhon – Foto: Reprodução

Em um outro relatório obtido pelo GLOBO, a Polícia Civil diz ter confirmado se tratar da voz do capitão Helton John com colegas de trabalho e amigos do futebol. Segundo o documento, ao tomarem conhecimento do caso, pessoas próximas ao capitão “’vinculadas a contextos religiosos’ expressaram profunda tristeza e decepção, reforçando a credibilidade das acusações sem indícios de falsidade”.

Procurada, a PM disse não ter sido ainda oficialmente informada da participação do capitão Helton John no crime de duplo homicídio. Já a Casa Militar de Roraima confirmou a decisão de afastar o oficial após tomar conhecimento da investigação. O órgão esclarece que, no dia do crime, Helton John estava de folga.

O aumento da violência no estado pode ser atestado pelos números de mortes ocorridas em confrontos com a polícia. As investigações desses crimes apontam que muitos deles são forjados para simular confronto com PMs. Dados do Ministério Público de Roraima indicam que, entre 2021 e 2023, a letalidade policial cresceu 75%, após quatro anos em queda. Desde 2021, o contingente de policiais militares aumentou 43%, com a adição de 950 militares.

—  De 2018 a 2021, houve uma significativa redução, de 60%. O ano de 2021 foi o menor índice recente. Mas, de lá para cá, ele aumentou significativamente (…) Essas mortes são sempre em confrontos com policiais militares — disse o promotor de Justiça Antonio Carlos Scheffer Cezar, responsável pelo controle externo da atividade policial e crimes militares.

Reportagem: O GLOBO

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