Com 20 anos de idade, o jovem Samuel Marshall Raimi estava pedindo dinheiro de amigos e parentes para o financiamento de um filme. Alguns deles se dispuseram a participar de um time que precisava de cinco atores e uma cambada de gente nos bastidores. Com muito talento e determinação, ele fez de tudo para que seu filme B não parecesse um… filme B! Ele acreditava mesmo que faria um grande filme de terror e levou o projeto a sério, mesmo com todas as limitações orçamentárias, acidentes no set e até a desistência de quase todos os atores antes do término das filmagens. Na verdade, só ficou um: seu amigo de adolescência Bruce Campbell. Como este também era produtor, era o único do elenco que estava disposto a ir até o fim. Nada disso desencorajou Raimi.
Concluir as filmagens era uma questão de honra, já que ele até abandonou a Universidade para fazer esse filme, que se chamaria “Book of the Dead” (“Livro dos Mortos”, em tradução livre). Mais tarde, seria renomeado para “Evil Dead: A Morte do Demônio”.
Valeu a pena
Se valeu a pena? A carreira de Sam Raimi responde. O filme deu a ele carta branca para duas continuações, uma filmografia bacana nos anos 1990 (incluindo “Darkman: Vingança sem Rosto”), uma bela parceria com os irmãos Coen (que escreveram “Um Plano Simples”) e, nos anos 2000, a oportunidade de levar às telas seu super-herói favorito, o Homem Aranha. Que, como sabemos, rendeu uma trilogia de sucesso e o colocou no topo de Hollywood – principalmente depois de “Homem Aranha 2”, um estrondo de crítica e vencedor de um Oscar de Melhores Efeitos Visuais. Ah, e ele será o diretor de “Doutor Estranho no Multiverso da Loucura”, primeira aventura de terror da Marvel. E tudo começou com aquele pequeno filme B, que virou quarentão nesta sexta-feira.
Esse efeito impressionante na vida de seu criador foi só uma parte do legado, porque “Evil Dead” fez ainda mais para a própria história dos filmes de terror. Lançado em 15 de outubro de 1981, após tantos trancos e barrancos, o longa narra a viagem de cinco jovens que passam a noite em uma cabana. No porão, um deles encontra um livro macabro e um toca-discos. Quando ligam o aparelho, a “música” era, na verdade, uma narração do livro que acaba despertando um mal desconhecido. A partir daí, possessões demoníacas tomam conta da turma e não dão paz ao jovem Ash (Bruce Campbell), único que não foi possuído pelo Demônio.
Criatividade
Apostando no gore, efeitos especiais práticos, atmosfera nebulosa e muita criatividade, Raimi mostrou ao mundo o poder narrativo do cinema independente. Com um teto de gastos de menos de 400 mil dólares (que, ressaltando, foi fruto de doações e investimentos), o cineasta sabia que tinha que mirar, principalmente, em uma coisa que não dependia de dinheiro para funcionar: seu talento. A ideia da câmera em primeira pessoa nas cenas da floresta, os ângulos certeiros nos personagens, a luz da própria decoração que alimenta nosso pavor da escuridão ao invés de nos aliviar dela,… Se antes era falta de alternativa, o estilo mão-na-massa se tornou um charme que deixou a obra ainda mais assustadora.
A primeira impressão dessa perseverança, porém, foi na direção de atores. Raimi foi esperto ao extrair boas atuações de um elenco amador, também capturando as reações da galera com o próprio clima frio da região e o desconforto constante no aperto do set. Isso fora a cereja do bolo que dependia do talento do maquiador Tom Sullivan, criador das próteses de látex e de litros de sangue falso com café (!) para “embelezar” o gore e passar a agonia com o sadismo dos demônios. E ficou uma beleza mesmo. Ainda mais juntando com a materialização das ideias cenográficas, fotografia amedrontadora, bem como edição enxuta (auxiliada por um assistente novato e também talentoso, um tal de Joel Coen). Essa tradução com o que a equipe tinha em mãos foi fundamental para transformar “Evil Dead” em um dos maiores cults de todos os os tempos.
O sucesso demorou
Só que, como todo bom cult, o longa não foi um sucesso no lançamento. Nenhum estúdio queria distribuí-lo e sua jornada foi iniciada em apenas quinze cinemas. Demorou um ano para que surgisse a opinião relevante (e decisiva) de um fã inesperado do longa: Stephen King. Foi em uma matéria da revista Twilight Zone, em 1982, que o escritor de “Carrie: A Estranha” e “O Iluminado” rasgou seda tanto para o filme quanto para Sam Raimi, após uma sessão no Festival de Cannes, na edição do mesmo ano. As palavras de King, considerando sua propriedade com o gênero terror, fizeram os críticos reverem a obra com um olhar mais atento. E não é que deu certo? Todo mundo queria ver que filme era esse e gostou muito. O Los Angeles Times, por exemplo, chamou-o de “clássico instantâneo”.
O melhor de tudo, no entanto, foi ganhar uma distribuidora. Era uma tal de New Line Cinema, que tinha pouco tempo de existência e enxergou na obra um potencial que gigantes como a Paramount não viram. Resultado: sucesso fora dos EUA e o VHS de “Evil Dead” se tornou o mais vendido de 1983 no Reino Unido. Mesmo com a censura máxima. Sam Raimi e Bruce Campbell se tornaram astros, com o personagem Ash se tornando um ícone do cinema de horror. O mito sobre a obra cresceu. Com o tempo, várias listas de melhores filmes de terror de todos os tempos tinham ele. Ou a continuação (“Evil Dead 2: Uma Noite Alucinante”). Ou os dois.
Remake
Mas não para por aí. Os dois produziram o remake de 2013, dirigido pelo uruguaio Féde Alvarez, que expande a história dos cinco jovens na cabana e mexe pauzinhos no roteiro, mas respeitando o plot do original e entregando uma boa refilmagem. O legado também se ramificou para outras mídias, com a série “Ash vs. Evil Dead”, que fechou em três temporadas; e o jogo “Evil Dead: The Game”, a ser lançado no ano que vem, para diversas plataformas. Tudo começou com a primeira sessão de cinema de “Evil Dead: A Morte do Demônio”, há exatos 40 anos. Na verdade, começou em uma cabana no meio do mato no Tenessee, de onde não sairiam dali até as filmagens acabarem. Quando finalmente saíram, só queriam chegar a qualquer lugar longe dali. Só não sabiam que chegariam tão longe.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda sexta-feira aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.