História real: a roteirista Michaela Coel escrevia um episódio de uma série chamada Chewing Gun quando, ao dar uma pausa para relaxar, resolveu tomar uns drinks com um amigo. Algo aconteceu. Horas depois, com a consciência recobrada, ela teve flashbacks incômodos na noite anterior e chegou a uma conclusão: ela foi estuprada e não se recorda do agressor. Informou o incidente à polícia e aos produtores da série, que não pareceram ligar muito. Mesmo assim, o estúdio pagou a ela uma clínica particular para uma terapia contínua até o fim das filmagens de Chewing Gun. Quem cometeu esse crime? Mistério.
Anos depois, após ouvir várias histórias de abuso sexual parecidas com a dela, Coel se sentiu inspirada a criar uma minissérie. Desta vez, sobre uma jovem escritora que foi abusada durante uma festa (!), enquanto tenta concluir seu segundo livro (!!). Sim, é inspirada na experiência traumática de Coel e tem liberdades autorais para evitar uma autobiografia literal. Está no catálogo da HBO Max e se chama I May Destroy You. Lançada na metade de 2020, a história de Arabella fez barulho na crítica, tornou-se um dos melhores programas da TV americana no ano anterior e, no mês passado, rendeu o primeiro Emmy de Melhor Roteiro a uma mulher negra. Um presentão antecipado para a escritora que completa 33 anos de idade hoje, 01 de outubro.
E um presente merecidíssimo. Protagonizada pela própria Michaela Coel e com um misto inteligente de drama e bom humor, “I May Destroy You” traz um recado urgente e necessário para a sociedade acerca da violência sexual e das formas inesperadas que ela toma – inclusive sem violência propriamente dita. No papel de Arabela, Coel vive uma mulher independente e intensa que compartilha suas experiências com os amigos Terry (Weruche Opia) e Kwame (Paapa Essiedu). A amizade do trio é uma celebração à vida e que, posteriormente, adquire uma outra função: suporte emocional, mesmo que Arabela não aparente a afetação do estupro.
Outra coisa interessante é que o roteiro foge do clichê do trauma sexual incontornável. Mesmo após a agressão, Arabella continua buscando encontros casuais, porque sabe que a culpa de seu trauma é do agressor, não do sexo. Essa forma de lidar simultaneamente com o melhor e o pior da sexualidade foi vista de forma veemente no cinema com o francês “Elle” (2016). Neste filmaço de Paul Verhoven, Isabelle Huppert interpreta uma mulher que é violentada por uma assaltante, mas que decide não deixar a situação abalar sua relação com outros homens.
Não que tocar a vida seja fácil – e ambas as obras nem pretendem fazer isso parecer fácil –, mas mostra como o tema é complexo e precisa ser discutido em todas as suas manifestações. Há uma cena, por exemplo, em que Arabela se irrita com uma atitude idiota de um parceiro sexual durante o ato e, mais tarde, descobre que essa atitude também pode ser considerada estupro. São essas microdenúncias que amplificam a luz sobre o tema e, inclusive, revelam uma linha tênue entre a ingenuidade e a babaquice, fazendo-nos enxergar que nós mesmos poderíamos já ter cometido algumas das “infrações” colocadas em tela.
É por isso que Michaela Coel acertou em cheio em não focar na investigação do estuprador misterioso, assim evitando criar mais uma minissérie criminal. É uma jornada de redescoberta da vida e que promove o repensamento de atitudes e valores, para todos os gêneros. E funciona ainda melhor com as grandes atuações do trio principal. Como protagonista, Coel carrega a ambiguidade de uma mulher que tenta não se perder em seu próprio alvoroço mental de regras, carreira, amor e desconfiança. Weruche Opia esbanja beleza, alto astral e um sorrisão contagiante que marcam uma pessoa que está do lado da melhor amiga tanto nas baladas quanto nas coisas sérias. Paapa Essiedu traz o olhar de insegurança e um dos retratos da linha tênue que citei lá em cima.
A relação não-consensual pode estar em detalhes que parecem insignificantes, até imperceptíveis, mostrando a necessidade de levantar essas questões. Com “I May Destroy You”, Michaela Coel fez sua parte usando uma história original e um roteiro brilhante, que precisa ser vista e recomendada. Foi premiada e dedicou seu prêmio a todas as sobreviventes de agressão sexual. Com isso, a Academia de Televisão acabou fazendo sua parte também, antecipando o maior presente para quem escreve séries. Mas nós é que fomos presenteados primeiro.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda semana uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.