“Duna” e “Eternos” são os projetos mais ambiciosos e aguardados de 2021. Ambos já foram lançados: o primeiro em 21 de outubro e o segundo, na quinta-feira passada. A empolgação com a segunda adaptação da obra-prima de Frank Herbert está no principal nome envolvido: o cineasta Denis Villeneuve, autor de obras excepcionais como “Os Suspeitos” (2013) e “A Chegada” (2016) e que já mostrou que sabe lidar bem com a magnitude de uma propriedade influente e consagrada, com “Blade Runner 2049” (2017). Portanto, ninguém mais adequado para lidar a transposição de um épico literário que foi o norte para outras obras de ficção-científica, inclusive no cinema.
Com “Eternos”, o hype vem de três históricos: 1) dos quadrinhos originais, criados pelo gênio Jack Kirby, que conta com personagens deuses, bem mais poderosos que heróis mais famosos; 2) da Marvel, que desenhou sua trajetória com um planejamento ímpar e entregou várias obras marcantes, sobretudo com um imenso talento para apresentar personagens novos ao grande público; e 3) da diretora Chloe Zhao, a atual campeã do Oscar, com o drama “Nomadland” (2020). Além disso, a escalação da cineasta faz parte da nova (e excelente) política do estúdio de investir em nome estrangeiros para promover a diversidade dentro da arte. Em tese, não tinha como dar errado, certo?
A boa notícia
“Duna” não é um remake do filme de 1984, mas uma outra adaptação do livro. A história é a mesma: a dinastia Atreides, comandada por Leto (Oscar Isaac), é escolhida pelo Imperador para governar o planeta Arrakis, fonte do produto mais procurado do Universo: a especiaria. Isso provoca a ira da dinastia anterior, Harkonnen, cujo exército é liderado por Rabban (Dave Bautista), e inicia uma série de conflitos por poder. A figura que pode trazer o equilíbrio a tudo é Paul Atreides (Timothée Chalamet). Sim, você já viu essa história antes. Porem, acredite: ela veio antes das histórias que você viu, já que o livro é de 1965, mais de uma década antes de seu derivado mais famoso, “Star Wars” (1977).
Ainda que o enredo pareça batido, é muito bom conhecer a obra que inspirou tanta coisa que vimos hoje, finalmente por um olhar de um artista que entendeu e abraçou sua grandiosidade. E – melhor – de alguem que entende o significado de cinema. A versão de Villeneuve é um primor visual, uma extração de imagens que só diretores antigos faziam (duvido que “Lawrence da Arábia” não tenha inspirado o cineasta) e uma aula de parcimônia narrativa entre paciência e senso de urgência. Tudo para dar essa ressonância épica sem cansar o espectador. O gancho final para a parte 2 (já anunciada pela Legendary Pictures) dá um anseio por uma continuação que foi sentido pela última vez há cerca de duas décadas, quando apareceu a frase Directed by Peter Jackson no final de “O Senhor dos Aneis: A Sociedade do Anel” (2001).
Claro que não é perfeito. Existem algumas coisas que cansam um pouco, como os sonhos de Paul, que aparecem em momentos bem inconvenientes; a importância de Lady Jessica (Rebecca Ferguson), que funciona no roteiro expositivo (no diálogo de Paul com a personagem de Charlotte Rampling), mas não muito na prática; e o design dos vermes gigantes, cujo formato esquisito da bocarra gerou vários memes nas redes sociais. Poderiam ter aproveitado o monstro da obra de David Lynch com os efeitos atuais, não acha? Pelo menos um aspecto em que o original supera o atual. E só, porque os dois são exatos opostos em qualidade, atmosfera e natureza gráfica. Enquanto o antigo é genérico e espalhafatoso, o novo é maduro e sóbrio.
A diferença principal entre as obras é a presença de identidade. A versão de 1984 é tão descaracterizada e deu tanta briga com o estúdio que David Lynch praticamente não reconhece “Duna” como um filme seu. E, analisando a fimografia do mestre do bizarro, que fez “Eraserhead” (1977) e faria “Veludo Azul” (1986), não é difícil concordar com ele. Por outro lado, o “Duna: Parte Um”, de 2021, é a cara de Denis Villeneuve. Vou mais longe: não tinha como ser de outro cineasta, principalmente depois do que ele fez com o novo “Blade Runner”. E vendo o que ele fez nessa primeira parte da batalha de Arrakis, pode apostar que a segunda parte virá com força total para fazer nossos olhos briharem. E, quem sabe, de azul.
A má notícia
A Marvel lançou uma enxurrada de produtos em 2021, dando-se particularmente bem no streaming – tanto que “Wandavision” ganhou três Emmy. De todas essas obras, a mais esperada foi no habitat natural da Marvel Studios: o cinema. “Eternos” seria a introdução de heróis que estão em um patamar acima, envolvendo celestiais, lutas milenares e a versão quadrinística dos demônios: os Deviantes. Considerando que, no enredo, os Eternos só poderiam interferir nos conflitos do planeta se houvesse Deviantes envolvidos, a expectativa aumentou ainda mais, alem dos itens do segundo parágrafo. Afinal, o que poderia ser pior que o titã Thanos, que evaporou metade da humanidade com um estalar de dedos?
Aí vemos a obra no cinema e tudo cai por terra. Sabe aquele talento que o estúdio tinha de introduzir bem personagens novos? Deixou em casa. O time formado por heróis-deuses não desperta uma gota de interesse. Além do roteiro não preparar um desenvolvimento a eles, os poderes deles, que deveriam ser grandiosos, são os mais genéricos possíveis. Tem um que é tipo o Superman, só que mais fraco (Ikaris); uma que é a Mulher Maravilha (Thena); outra que é o Flash (Makkari); um Hulk sem ser verde (Gilgamesh); uma versão chinfrim do Yusuke, do anime Yu Yu Hakusho (Kingo); uma menina que é o Multi-Homem, do desenho “Os Impossíveis” (Sprite); e a líder Ajak, que é uma Wolverine terceirizadora, curando os outros também.
Até funcionaria se lançassem uma hipótese – ou uma enganação, pelo menos – para dizer, sei lá, que foram eles que deram origem a todos os outros poderes da Terra. Mas não. Apostam no genérico mesmo, até as atuações, que não são ruins, mas também não são boas (pô, Angelina! Pô, Salma!…). Isso se aplica também aos Deviantes, monstros perigosos, mas que não convencem como os únicos seres dignos da intervenção dos Eternos. Na verdade, esse é o maior pecado da obra: a gente não SENTE a aura celestial que deveria pairar sobre toda a metragem. Os heróis e vilões não parecem seres milenares, mas comuns. Demoram para se enfrentar e, ainda assim, o tempo de sobra para fazê-los crescer é gasto com muitos flashbacks. Enfim, uma eternidade.
Com tudo isso, é dureza engolir que é um filme dirigido por uma irreconhecível Chloe Zhao. A mulher acaba de ganhar o Oscar merecidamente, por sua sensibilidade em mostrar problemas sociais de pessoas marginalizadas e a luta por uma vida melhor em “Nomadland”, e faz isso com o que deveria ser o maior projeto de sua vida? É quase uma constatação de que não basta ter talento, é preciso se conectar com o projeto. Talvez ela não tenha se conectado, pois não há quase nada que lembre Chloe Zhao aqui. É um programa com bons efeitos, alguma ação e nada mais. Por tudo isso, “Eternos” é um dos filmes mais decepcionantes do ano – senão “o” mais.
Enquanto isso, “Duna” é o mais bem feito (junto com “O Cavaleiro Verde”) e um dos melhores de 2021, com chances até de ser indicado ao Oscar, em categorias importantes. Claro que depende muito da concorrência, mas não importa. Independente de prêmios, Denis Villeneuve colocou seu nome no jogo de potências hollywoodianas e vamos torcer que assim se mantenha. Chloe Zhao já é mais intimista e, também, mais íntima da realidade, de grandes feitos saídos de ambições menores. Dessa forma, também mostrou sua belíssima assinatura no cinema. Só não é na Marvel que você vai achar.
Júnior Guimarães é jornalista e escreve a coluna Cinema em Tempo. Toda sexta-feira aqui no Roraima em Tempo temos uma análise sobre o mundo cinematográfico. No Youtube, Júnior tem um canal onde faz críticas e avaliações sobre cinema.